Na Margem (Em Busca do Eu) - Cap. 3

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Cap 2 - http://www.recantodasletras.com.br/contos/1012774

Apesar que ainda falta muito caminho pela frente, não me importo nem um pouco. Afinal a estrada é a vida. Me sinto mais velho a cada minuto. Claro, com mais experiência. Finalmente livre desse autismo social. Acho que as pessoas criativas sempre tiveram mais dificuldade em relacionamentos pessoais, conseqüentemente se acabam isolando de tudo e de todos. É ainda mais que as vezes acabam caindo em traumas para a vida toda.

A manhã se ergue timidamente, borra o quarto barato que achei na beira da estrada. Sonolenta e cheia de orvalha a estrada me convida a seguir em frente. Nascido pra correr, acho que o bardo americano tinha razão. Nasci pra correr, tenho suor escorrendo na nuca e o vento na cara para me despertar de vez. Pego essa máquina suicida e corro como nunca. Corro do sonho brasileiro de um futuro de primeiro mundo. Sou um vagabundo de primeira classe, um vagabundo com carro, um vagabundo fracassado. A velocidade me enjoa e vejo que nem de perto estou completo dirigindo esse possante.

Dilemas.... como continuar? Como largar tudo? Mais rápido. Eu não acredito na falsa moral que me levaria feito engrenagem em frente.

Mais a frente uma figura destacada pela grande barriga, perfeitamente redonda cobrindo o horizonte, pede carona com duas mochilas grandes jogadas ao lado. Reduzo e me aproximando percebo se tratar de uma garota grávida, o sorriso de empatia pela carona que vai rodando devagar em sua direção é nítida. Todos meus amigos devem estar voando em naves brancas, fugindo de uma utópica noite perfeita, regada de cachaça e festas líricas. E essa garota, sorri e encara o mundo da mesma maneira que eu fiz na outra manhã.

Com um sorriso jovial ela se abaixa na janela do passageiro e pergunta pra onde vou. “Seguindo em frente”. Ela tem olhos verdes, meio tristonhos, o nariz é uma batatinha, redonda e achatada. A pele meio sardenta e sem imperfeição alguma revela de fato ser tão ou mais jovem que eu. Não usa maquiagem e tem um ar cativante natural. Seria aquela garota que passa despercebida em qualquer roda de papo, porém nunca deixa de cativa uma alma mais atenta a esse brilho tímido que insiste em raiar.

Depois de trocarmos um comprimento mais coloquial, ela joga suas mochilas no banco de traz do carro e se acomoda ao meu lado. Descobri que se chama Julia. Ela usa um allstar surrado, de um preto desbotado de tão velho, eu e ela poderíamos nos apaixonar e esquecermos tão rápido quanto o sol tinha me trazido está companheira de viajem. Mas não era o caso, ela falava tanto quanto o meu silêncio permitia. Logo soube que era do norte, já vinha viajando de carona desde Pernambuco e rumava para o sul em busca do amor de sua vida e pai de sua filha. Estava de sete meses e fugira da família que a pressionava para que abortasse o filho renegado pelo pai. Ela por sua vez acreditava que aquele romance de verão fora algo além. O brilho de seus olhos refletia claramente a esperança de se achar em um cara que provavelmente nem se lembrava dela. Me senti comovido e tentado a fazer algo para lhe mostrar que a vida não era bem assim. Mas afinal, quem era eu para explicar algo a respeito da vida?

Encolhi os ombros e sorri maroto, disse que o sul me parecia uma boa idéia, e que era uma boa idéia ir rumando até aonde nos parecesse conveniente, então ela poderia reencontrar seu amado e eu, bom eu seguiria minha fuga rumo ao desconhecido. Como se fôssemos conhecidos de anos, me beijou a face e sorria feito criança frente ao aguardado ovo de páscoa. Ela ainda me contou diversas história do que tinha passado pela estrada, inclusive um quase estupro de um caminhoneiro que lhe levara por um trecho da viagem.

Disfarçando-a de desculpa deslavada, me senti mais confiante a rumar sul. Depois de jogarmos algumas besteiras de beira de estrada goela adentro e deixar o norte para trás me senti um pouco mais a vontade e lhe contei a família abandonada, a carreira deixada pra trás e tudo que me ocorrerá nos últimos tempos até o encontro fatídico na estrada com ela. Parecia que se divertia e acho que me dei por um bom contador de histórias, por várias vezes sua careta expressiva demonstrava suspense, apreensão e deleite com as situações mais extremas.

Ainda que ela duvidasse que minha fuga ou busca, era apenas pessoal, não tinha outras pessoas na história ela, como uma romântica perdida em um tiroteio de realidade, insistia que alguma mulher havia me fisgado e me levava rumo ao sul com ela. Me divertia suas tentativas de adivinhação e sua criatividade aparentemente ilimitada. Me tornei amante de índias, gaúchas, inclusive de uma poetisa argentina que tocava piano e vivia drogada pelos subúrbios de Buenos Aires. Uma das histórias que mais me fascinei foi com a que eu rumava para os Andes em busca daquele avião que desaparecesse semanas antes e que minha amada estava neste vôo, e que em momento algum eu me abalei e tinha certeza que ela estava viva.

Em meio devaneios e invenções homéricas, nos divertimos, rimos bastante e deixamos um bom trecho de estrada para trás. Mas a noite já avançava e logo mais teríamos que achar um canto para descansar. Me surpreendi quando a proposta por racharmos um quarto no próximo motel saiu da boca dela. Já havia me passado diversas imagens na cabeça, aonde dormia em um sofá e no meio da madrugada e guria com aquele barrigão me acordava com beijos e nos fazíamos amor de uma forma quase selvagem, sem pudor ou medo algum. Ao mesmo tempo uma repulsa e um forte sentimento de culpa me assolava pelo estado da garota e pela malícia descabida de meu ser. O convite despretensioso dela me pegou em cheio, Aceitei e doze quilômetros depois fazíamos o check-in no Amarotel 24 Horas com Café da Manhã, o quarto era de tirar gargalhadas de qualquer ser humano sério. Laranja com detalhes rosas. Parecia um quarto saído de um sonho bizarro do Tim Burton, a cama tinha um enorme coração retalhado na colcha, e a lâmpada era controlada por um termostato que possibilitava regular a intensidade, variando do amassos calientes ao dark room. Originalidade a flor da pele, caímos na risada com o adesivo cafona que indicava as intensidades da luz. No sofá as almofadas eram com perfume de morango, e como kit promocional recebemos um par de camisinhas extra grandes e um tubo pequeno de lubrificante íntimo.

A luz logo foi apagada, deixamos combinado que pela manha tomaríamos um banho, pegaríamos o café da manhã e botaríamos o carro para rodar estrada abaixo novamente. Depois de comentários maldosos a respeito do duvidoso gosto do decorador desta obra de arte de quarto, o sono bateu e do meu sofá podia escutar a respiração constante e calma de Julia, assim como os gemidos devassos e passionais do casal empolgante ao quarto ao lado, creio que ela tinha caído no sono antes dos vizinhos começarem a sacanagem pornográfica que devia rolar por lá. Não pude evitar de soltar pequenas risadas e em vão esperar por mais uma conversa jogada fora. Logo o sono bateu e me entreguei sem lutar.

JMadrid
Enviado por JMadrid em 09/06/2008
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