Árvores, Vento e Amor.

Via a cena com clareza: lá estava meu marido, vestindo um terno preto, apoiando seu corpo na parede fria atrás de si, no canto da sala. Fumava um cigarro de marca cara, os olhos fixos num ponto, modo como costumava ficar quando pensava profundamente. Eu estava deitada logo a sua frente, de olhos fechados, num local bem macio e onde minha cabeça podia repousar com tranqüilidade e até prazer, sendo que me bastaria apenas ter meu querido deitado ao meu lado, com nossas mãos entrelaçadas como gostávamos de ficar, se onde eu me encontrava tivesse lugar suficiente para isso... Um caixão de madeira bordô lustrosa, com algumas flores sobre mim, e pétalas ao redor, no chão. Poderia até dizer-lhes que a imagem era bela, se os ânimos deixassem.

Ah! Mas eu não me entristecia. Antes de estar aqui vivi um dos momentos mais sublimes de minha vida, num dos lugares mais bonitos que poderia ter estado: um campo verde, durante uma viagem. Eu e meu esposo viajávamos com freqüência, e eu sempre tive certa “quedinha” por natureza. Nesta última viagem não resistimos e acabamos por parar no acostamento, ao lado de uma velha fazenda. Andamos furtivamente pelo campo aberto, até chegarmos no morro. De mãos dadas entramos mato adentro, com um sorriso de medo e vontade, desviando de galhos ou raízes das árvores com um pouco de dificuldade, embora ele me ajudasse a subir. Encontramos então um local não muito a vista nem tão distante, que nos pareceu confortável. E como se tivéssemos combinado, nos olhamos séria e ternamente e nos beijamos. À medida que os beijos aumentavam, de forma ousada tirávamos nossas roupas, sem pressa, e deitávamos. Os raios de sol entre as folhas das árvores, que batiam em nós, davam uma sensação de calor e amor, sendo logo dispersa por uma brisa fresca que atravessava-nos, e as árvores. Tudo ao redor, desde o menor monte de terra sob nós, até a maior e mais alta folha da mais alta árvore, absolutamente tudo era completo, perfeito.

Ficamos deitados um tempo depois, de mãos dadas, olhando para o céu, observando o azul por detrás do verde, acima de nós. Eu desejava chegar até o topo de uma árvore e ficar balançando o meu corpo suavemente de um lado para o outro, junto com a sua copa, com o vento, pois me sentia leve... Adormecemos juntos.

Já perigava anoitecer quando acordei, de súbito, como se algum barulho fosse o responsável por isso. Ergui minha cabeça levemente, mas não vi nada. Era de se imaginar que o dono da fazenda poderia estar por perto, talvez até tenha nos observado. Senti-me ojerizada por esta idéia, resolvendo acordar meu marido e sairmos logo dali. Porém, antes que eu o fizesse, vi um vulto masculino passar entre as árvores, parecendo carregar algo nas mãos, onde o morro inclinava-se mais, e era difícil saber o que se passava.

Com meu susto meu marido acordou, fitando-me com olhar interrogatório até que eu disse para nos vestirmos e sairmos dali depressa. Por um momento ele me olhou surpreso, mas percebendo que eu estava inquieta, realizou o que eu pedi. Tomamos o caminho de volta sem olhar para trás.

Felizmente, ao chegarmos no carro, tudo estava como havíamos deixado. Retomamos a viagem e só então lhe expliquei o que acontecera. Sentindo-nos mais seguros e tranqüilizados, demos inicio a uma conversa que se estendeu por algumas horas, onde discutimos diversos assuntos, todos relacionados. Nós sempre tivemos uma intimidade muito grande para conversar sobre tudo, desde o inicio, e isso nos manteve a vontade um com o outro. Então, repentinamente, disse que desejaria ver minhas cinzas espalhadas por aquele morro, quando minha hora chegasse. Ele me olhou com espanto, mas já estava acostumado com esse meu jeito espontâneo de dizer o que eu estava pensando ou sentindo, não importando o momento ou o tipo de conversa que fosse. Sorriu para mim e prometeu que faria como eu desejava, mas que ainda faltava muito tempo para isso. Eu sorri, concordando, enquanto olhava os morros se distanciando, onde a poucos instantes nos amávamos imensamente.

Avançávamos o percurso a medida que a noite avançava. A natureza era ainda mais interessante à noite. A única coisa que me deixava alerta era ultrapassar algum veículo a frente. Fora isso, ficava admirando a paisagem, sonolenta. Eu me sentia muito feliz.

Acabei adormecendo durante algumas horas, para minha surpresa – pois eu nunca tinha, até então, pegado no sono em um automóvel, pois não conseguia – quando logo depois tornou-se um sono muito mais profundo, tão profundo onde sentia afundando-me dentro da minha própria escuridão.

Eis então que jazo aqui. Logo após o velório, meu marido e mais alguns homens uniformizados por uma empresa, da qual não me recordo o nome, carregaram-me até um carro negro de vidro fumê. Depois de alguns instantes o veículo parou e senti-me sendo conduzida através de um corredor muito bem iluminado, pois lembro-me de ser muito branco, em direção a uma porta lateral de uma sala, onde me puseram em outro pequeno lugar, desta vez escuro. Então meu corpo começou a se aquecer de tal forma que eu parecia estar queimando, e de fato estava, lentamente, salvo os cabelos, pois estes queimavam rápido. Não restou nada simétrico em mim, após algum tempo. Senti-me sendo estupidamente "varrida" com indiferença por algum imbecil, sem ser juntada – que palavra absurda de se dizer! – completamente. Colocaram-me então num lugar menor ainda, mas nesse momento eu não necessitava de muito espaço.

Fui carregada até outro veículo, este de meu marido, que com olhos tristes e umedecidos por algo que julguei só podiam ser lágrimas, ia me levando por um caminho já conhecido...

Saímos da cidade. Os morros mostravam-se. Ele parou no acostamento, horas depois, e novamente invadiu a "nossa" velha e conhecida fazenda, carregando-me. Senti-me então retornar aquele momento de extrema paz. Ouvia os pássaros, podia imaginar o verde e tudo o mais. Desejei abraçá-lo e beijá-lo, quando percebi que entramos no mato do morro, e pude ver – sim, ver, enquanto subíamos – um casal que dormia abraçado e nu, logo no inicio da subida. Finalmente compreendi tudo, mas sentindo-me confusa, resolvi não me importar com isso. Meu marido prosseguiu a longa subida até que chegamos na parte mais alta do morro. Lá o vento era bem mais forte, eu o ouvia com uma intensidade maior, da onde eu estava. Dava pra ver a estrada, outros morros, a fazenda toda – que agora penso estar abandonada mesmo, ou inabitada, enfim – e o céu imenso. Por um momento ficamos olhando o horizonte sem nada dizer ou pensar. Eu sentia que em breve estaria novamente no chão daquele lugar, bem como no topo das árvores, no ar, no vento, em tudo. Finalmente, de olhos secos, meu querido abriu a caixa, que pude ver ser de um azul celeste, e pouco a pouco o vento foi levantando a minha poeira. Abracei o vento e meu amor com todas as minhas forças enquanto partes de mim eram lentamente sendo levadas, de forma suave, até que dissipei-me totalmente, indo balançar-me nas copas das árvores.