Nhá Lua
Compadre Lemos
“Cadê Mãe,
Tá no cabelo
Da minina choradêra,
Qui fugiu do Setestrêlo.
Da minina choradêra,
Qui fugiu do Setestrêlo!”
( Cantiga inventada por Nhá Lua )
***
Nhá Lua nem sempre foi Nhá Lua.
Esse nome veio depois, quando muita coisa sumiu da cabeça - as lembranças - e outras tantas apareceram, criaram vida. As visões, que ninguém entendia.
Nhá Lua nasceu foi Maria Tereza, filha de Norberto Seleiro, homem calado, lá com ele sempre, no comércio do Setestrêlo, oco do mundo, interior esquecido de Minas Gerais.
Infância triste, de sozinha filha única. “Pai tá é véi”, sopensava Maria, que se falasse, apanhava.
E aprendia, mesmo sem saber, a imitar o silêncio e o olhar triste de Mãe.
Mãe lavava, passava, cozinhava, sofria e calava, sempre. Maria Tereza também.
Amigos?... Não. Pai tinha birra de gente outra, os de fora, como ele chamava. Falar com estranhos, só ele, mesmo assim, para tratar serviços, donde vinham os réis pra despesa.
Mãe e Maria, confinadas lá dentro, cuidando da vida lá delas, quando os de fora chegavam. E eram tão poucos! Escola? Coisa de rico, Pai falava. Homem é pro eito, mulher, pro fogão. Carece o que?...
Essa era a vida ( vida? ) de Maria Tereza, até o dia mais terrível. O dia em que Mãe nunca mais acordou. Daí, mudou.
Mãe era primeira a levantar, todo dia. Acendia o fogo, botava água na chocolateira velha e logo o cheiro do café acordava o mundo. Isso, todo dia, todo santo dia, porque cada dia tem seu santo. Menos naquele.
Naquele dia, Mãe não acordou. O café não fez o mundo ficar cheiroso, com cheiro de levanta-povo. O silêncio na cozinha assustou Maria, que pulou da cama.
- Mãe! Tá duente?
Mãe, quieta, fria. Já não estava mais ali.
- Pai, vigia Mãe!... Tá isquisista!...
O de resto, Nhá Lua, hoje, quase não se lembra mais.
A casa cheia de gente, os de fora, de roupa domingueira e falando baixo. Pai, calado, sentado no batente da porta da cozinha, vigiando formigas passeadeiras, entre seus pés.
O povo, como se fosse dono da casa, fazendo café e biscoito frito, arranjando flores, enfeitando Mãe, no caixão. E Maria Tereza, pra dentro e pra fora, assuntando tudo e entendendo nada.
Padre Gregório veio, rezou, disse coisas. Palavras... Parecia até missa! Muita gente chorando, sentida, falando que Mãe era boa.
- Discansô, coitada!
Saiu o enterro. Pai foi. Maria não. Ficou mais Donana de Lucas, para ajudar na arrumação da casa.
De noitinha, Pai voltou. E, com ele, o silêncio maior.
Nunca mais que Pai falou palavra, fosse com quem fosse. Quando muito, "rum rum", "inhor sim", "inhor não", de necessidade maior.
No mais, só o olhar triste, no chão, buscando o que não perdeu.
Daí, Pai pegou outra mania: a de acompanhar Maria Tereza com os olhos, onde quer que ela estivesse, onde quer que ela fosse. Olhar insistente, silencioso, triste de doer lá dentro, quase um desespero!
Maria Tereza percebeu, depois de algum tempo, o olhar de Pai. Sentia-se incomodada, querendo fazer alguma coisa para mitigar tanta tristeza. Mas Pai era calado, distante, bravo. Ela sentia medo, às vezes; e não conhecia a palavra carinho.
Depois, acostumou-se. Um dia, passa. Nunca passou!
Pra mais de dois anos depois que Mãe tinha morrido, nasceu, por fim, Nhá Lua.
Noite de chuva fina, friozinho gostoso de sentir coberta e imaginar, na cama, o que seria – Deusmelivre! – estar lá fora, feito pinto molhado.
No quase – dorme, momento misterioso entre sono e sonho, o susto. A mão pesada sobre a boca, o corpo pesado sobre o corpo, a respiração afobada, o cheiro de cigarro e cachaça...
A boca na boca, as mãos ásperas no corpo todo, a roupa rasgada, a coisa estranha e grande forçando entrar lá nela... a dor... a dor... a dor!...
Uma vida, durou aquilo. O que era aquilo? Era castigo? Pesadelo? Loucura?...
Quando terminou, o homem saiu de cima dela e se foi, num silêncio de quem matou e não se arrepende. No passar pela porta do quarto, voltou-se e olhou Maria, num relance. E Maria, ainda Maria, reconheceu os olhos de Pai. Era Pai!...
E Maria nunca mais foi Maria Tereza, de Norberto Seleiro.
Sumiu de casa, naquela mesma noite fria. Andou, andou, até não mais agüentar, até não mais se lembrar, até não saber de mais nada.
Andou até parar de sofrer!
E hoje, doida, aluada, vive pelas estradas do mundo, procurando Mãe, porque sabe que só Mãe pode lhe dizer o que era aquilo.
Na boca dos meninos, na boca do povo, Maria Tereza nunca existiu. Existe Nhá Lua, a doida, que conversa sozinha, que canta muito, que olha e não vê...
Nhá Lua, vestida de trapos, de cidade em cidade, de rua em rua, de casa em casa, pedindo comida, perguntando por Mãe e cantando tristes cantigas. Estranhas cantigas que ninguém nunca ouviu, no sem-fim dos insondáveis caminhos de Minas!
“ Cadê Mãe,
Tá no cabelo
Da minina choradêra,
Qui fugiu do Setestrêlo.
Da minina choradêra,
Qui fugiu do Setestrêlo! ”
Compadre Lemos
“Cadê Mãe,
Tá no cabelo
Da minina choradêra,
Qui fugiu do Setestrêlo.
Da minina choradêra,
Qui fugiu do Setestrêlo!”
( Cantiga inventada por Nhá Lua )
***
Nhá Lua nem sempre foi Nhá Lua.
Esse nome veio depois, quando muita coisa sumiu da cabeça - as lembranças - e outras tantas apareceram, criaram vida. As visões, que ninguém entendia.
Nhá Lua nasceu foi Maria Tereza, filha de Norberto Seleiro, homem calado, lá com ele sempre, no comércio do Setestrêlo, oco do mundo, interior esquecido de Minas Gerais.
Infância triste, de sozinha filha única. “Pai tá é véi”, sopensava Maria, que se falasse, apanhava.
E aprendia, mesmo sem saber, a imitar o silêncio e o olhar triste de Mãe.
Mãe lavava, passava, cozinhava, sofria e calava, sempre. Maria Tereza também.
Amigos?... Não. Pai tinha birra de gente outra, os de fora, como ele chamava. Falar com estranhos, só ele, mesmo assim, para tratar serviços, donde vinham os réis pra despesa.
Mãe e Maria, confinadas lá dentro, cuidando da vida lá delas, quando os de fora chegavam. E eram tão poucos! Escola? Coisa de rico, Pai falava. Homem é pro eito, mulher, pro fogão. Carece o que?...
Essa era a vida ( vida? ) de Maria Tereza, até o dia mais terrível. O dia em que Mãe nunca mais acordou. Daí, mudou.
Mãe era primeira a levantar, todo dia. Acendia o fogo, botava água na chocolateira velha e logo o cheiro do café acordava o mundo. Isso, todo dia, todo santo dia, porque cada dia tem seu santo. Menos naquele.
Naquele dia, Mãe não acordou. O café não fez o mundo ficar cheiroso, com cheiro de levanta-povo. O silêncio na cozinha assustou Maria, que pulou da cama.
- Mãe! Tá duente?
Mãe, quieta, fria. Já não estava mais ali.
- Pai, vigia Mãe!... Tá isquisista!...
O de resto, Nhá Lua, hoje, quase não se lembra mais.
A casa cheia de gente, os de fora, de roupa domingueira e falando baixo. Pai, calado, sentado no batente da porta da cozinha, vigiando formigas passeadeiras, entre seus pés.
O povo, como se fosse dono da casa, fazendo café e biscoito frito, arranjando flores, enfeitando Mãe, no caixão. E Maria Tereza, pra dentro e pra fora, assuntando tudo e entendendo nada.
Padre Gregório veio, rezou, disse coisas. Palavras... Parecia até missa! Muita gente chorando, sentida, falando que Mãe era boa.
- Discansô, coitada!
Saiu o enterro. Pai foi. Maria não. Ficou mais Donana de Lucas, para ajudar na arrumação da casa.
De noitinha, Pai voltou. E, com ele, o silêncio maior.
Nunca mais que Pai falou palavra, fosse com quem fosse. Quando muito, "rum rum", "inhor sim", "inhor não", de necessidade maior.
No mais, só o olhar triste, no chão, buscando o que não perdeu.
Daí, Pai pegou outra mania: a de acompanhar Maria Tereza com os olhos, onde quer que ela estivesse, onde quer que ela fosse. Olhar insistente, silencioso, triste de doer lá dentro, quase um desespero!
Maria Tereza percebeu, depois de algum tempo, o olhar de Pai. Sentia-se incomodada, querendo fazer alguma coisa para mitigar tanta tristeza. Mas Pai era calado, distante, bravo. Ela sentia medo, às vezes; e não conhecia a palavra carinho.
Depois, acostumou-se. Um dia, passa. Nunca passou!
Pra mais de dois anos depois que Mãe tinha morrido, nasceu, por fim, Nhá Lua.
Noite de chuva fina, friozinho gostoso de sentir coberta e imaginar, na cama, o que seria – Deusmelivre! – estar lá fora, feito pinto molhado.
No quase – dorme, momento misterioso entre sono e sonho, o susto. A mão pesada sobre a boca, o corpo pesado sobre o corpo, a respiração afobada, o cheiro de cigarro e cachaça...
A boca na boca, as mãos ásperas no corpo todo, a roupa rasgada, a coisa estranha e grande forçando entrar lá nela... a dor... a dor... a dor!...
Uma vida, durou aquilo. O que era aquilo? Era castigo? Pesadelo? Loucura?...
Quando terminou, o homem saiu de cima dela e se foi, num silêncio de quem matou e não se arrepende. No passar pela porta do quarto, voltou-se e olhou Maria, num relance. E Maria, ainda Maria, reconheceu os olhos de Pai. Era Pai!...
E Maria nunca mais foi Maria Tereza, de Norberto Seleiro.
Sumiu de casa, naquela mesma noite fria. Andou, andou, até não mais agüentar, até não mais se lembrar, até não saber de mais nada.
Andou até parar de sofrer!
E hoje, doida, aluada, vive pelas estradas do mundo, procurando Mãe, porque sabe que só Mãe pode lhe dizer o que era aquilo.
Na boca dos meninos, na boca do povo, Maria Tereza nunca existiu. Existe Nhá Lua, a doida, que conversa sozinha, que canta muito, que olha e não vê...
Nhá Lua, vestida de trapos, de cidade em cidade, de rua em rua, de casa em casa, pedindo comida, perguntando por Mãe e cantando tristes cantigas. Estranhas cantigas que ninguém nunca ouviu, no sem-fim dos insondáveis caminhos de Minas!
“ Cadê Mãe,
Tá no cabelo
Da minina choradêra,
Qui fugiu do Setestrêlo.
Da minina choradêra,
Qui fugiu do Setestrêlo! ”