SALOMÃO

Como é mesmo o nome dele? Fez a pergunta, mordendo a ponta do lápis, deitada, debruçada sobre o livro, em cima do tapete ordinário da sala de chão de taco descolando. Mas fez a pergunta lembrando de Olga com aquele jeitinho de enrolar mecha dos cabelos entre os dedos, dando um sorrisinho tipo debochado; as duas no portão da casa desta mesma Olga, e os olhos dela fugindo oblíquos para a estreita rua de barro onde passara trotando uma carroça puxada pelo um jumento. O chicote atacando no lombo do pobre animal. Nem se lembra mais da cara do malvado homem, assim diria Vinicius, aquele menino bonito de olhos verdes, cabelos escorridos quase caindo aos ombros. Mas isto foi há certo tempinho atrás, quando ela e Olga iam para missa, enfastiadas daquelas manhãs de domingo em que nada se tinham para fazer, descendo a pequena rua em ladeira que moravam, ambas olhando para seus vestidos lindos que podiam servir para bailes, festas, mas Olga bocejava, bocejava e dizia:

_ Samanta não há nada que possamos fazer...

Eram irmãs. Irmãs assim mesmo de mães diferentes, em casas diferentes. O pai era o mesmo, aquele homem alto, com voz grossa e barba suja, de um pardo como que de cor encardida. Saulo, era carpinteiro, e sua oficina era no quintal abaixo de sua casa, a casa cuja agora vivia, que mesmo construiu fazendo-a erguida sobre pilastras, com um pátio pavimentado, e este era sua oficina.

É Vinicius que me falou que era maldade dar no lombo do animal com o chicote, lá no quarto de Olga, semideitado sobre a cama dela, encostado contra a parede, dedilhando um violão, os cabelos caindo aos olhos, ele afastando com charme assim de quem joga a cabeça para o lado – Samanta cismava, olhando as gravuras do livro: renascimento, escrito em letras bem separadas. Riscou um S num ponto em branco do livro, levou novamente à ponta do lápis a boca. Vinicius também havia dito, esquecendo o violão sobre o colo, alisando o peito que aparecia pela camisa aberta, que havia uma festa aquele sábado, festa de quinze anos da Duchinha. Conheciam a Duchinha? Perguntara, erguendo-se, ficando sentado – seu porte esbelto e magrelo, o pomo saliente a garganta, subindo e descendo (aquilo dava uma loucura!) – e colocando o violão de lado com cuidado, deitado sobre a cama, olhando-o como a uma mulher, ele avisou que a Duchinha queria todos na festa dela no sábado. Olga estava de costas para ele, debruçada sobre a janela aberta, ela olhava o pequeno pomar; antes tentava alcançar com uma das mãos a copa da pitangueira ali tão perto.

Fora um dia claro, tão claro aquele: terça-feira.

Olga voltou-se para ele, num charme assim de quem parecia que ia se atirar aos braços dele, mas ficou onde estava, rindo como quem acabara de descobrir toda a graça da vida num só tempo. Era assim quase morena, os cabelos meio ondulados caindo sobre os ombros, uma graça de se rir, perfumar, os vestidos nem muito justos nem muito largos, nem muito estampados nem muito opacos, nem muito magrela nem muito cheia. Vinicius ficara até mesmo um pouco ereto, sentado na beira da cama, mas Olga voltara-se para o som em cima da cômoda quase junto à porta, ficando de costas para ele novamente.

_ É festa de debute, festa de debute Vinicius – o som que ela colocara fluíra raso e lento sobre o ambiente, é que sabiam Marta não podia com som alto, liam assim pelo dedo indicador de Olga nos lábios cerrados, mas eram os lábios pintados de um batom vermelho-vivo que os atraíram assim como uma lâmpada acesa num ambiente escuro.

Marta, a mãezinha como ela chamava, assim delicada, levando uma xícara de chá fumegante para o quarto dela. Podia se sentir o perfume do quarto: alfazema, alecrim ou algo assim: tão doce.Podia ser o cheiro do chá apenas? Mas aquela penumbra, um ar morno vinha lá de dentro, e aquela voz delicada e sucumbida:

“_ É Samanta que está ai?... É Samanta?...”

“_ É sim, mãezinha, é sim...”

Queria tanto chegar mais perto, mas seria medo aquilo? A voz de Hosana avisando, ajeitando o lenço sobre a cabeça amarrado, no patamar da escada que dava para o portão e do portão para a rua.

Mas a Duchinha, sabem aquela...Complementou Vinicius pondo-se de pé, andando de um lado para o outro, mirando em Samanta seus olhos que pareciam ficar úmidos, ela ali tão encolhidinha, sentada num tamborete, disfarçando todo revolver do momento com uma mancha de umidade na parede cor de rosa; uma mancha que parecia o mapa da China.

Por que aqueles olhos desafiando? Daqui a pouco seria a hora de sair assim disfarçando, sabia muito bem, quando ele beliscava Olga assim nas costas e ela dava um gritinho tão falsadamente irritada.

_ Aquela gorducha – berrou Olga estrondando numa gargalhada toda se vergando para trás numa graça, a cortina que o vento inflou lambendo seu rosto.

Vinicius cuspiu pela janela, rindo secamente, as mãos na cintura, suspendendo a bermuda, apertando o cinto, e confirmou, mas sim, ela estava fazendo balé, pois não sabia ficava dançando em casa, era sua vizinha, a ouvia dançando a valsa das flores, podia imaginar girando nas pontas dos pés, os gritos que a mãe dava seria de iupi-urra ou seria de pavor que a filha desabasse pelos calcanhares? Encontraram-se assim rindo, caindo juntos quase num abraço, e aquela musiquinha tão suave foi ficando abafada, abafada pela gargalhada dos dois quase abraçados, estava pronta para se levantar se não chamassem lá no portão: voz de timbre alto, podia jurar que um cachorro latiu numa casa vizinha logo em seguida, assim Olga abandonou o quarto as carreiras, fazendo um gesto com as mãos para Vinicius esperar, então seus olhos viraram-se novamente para Samanta assim Olga abandonou o quarto, deixando a porta aberta. Todavia, não houve tempo para uma aproximação logo Olga voltou esbaforida, chamando-o com um aceno de mão, e ele seguiu-a serelepe, era seu sorriso o afoguear das faces que já dizia quem estava no portão. Samanta ficara um tempo assim olhando a porta esquecida aberta, as sombras do vento oscilando sobre o sol refletindo sobre a parede contígua a porta, até que, abrindo um sorriso de mera importância, Samanta resolveu se erguer do tamborete, chegou até a janela aberta, afastou as cortinas como se já fosse dona, aspirou o cheiro da tarde: cheiro das pitangas. Debruçou-se sobre a janela então viu o portão aberto: Vinicius, Olga encostada o umbral distante dele, e a frente dela, aquele rapaz...quem seria? Podia ainda se lembrar do gesto com as mãos que Olga fizera chamando Vinicius ainda pouco, lembrar nitidamente, as faces queimando, o batom nos lábios parecera ficar ainda mais encarnado.

Olga rira daquele seu jeito charmoso, agarrando o enorme cavanhaque dele entre uma das mãos, ele rindo, ajeitando o boné sobre a cabeça.Ela o divertia com certeza, mas ele se assemelhava um bode com aquele cavanhaque. Mas era uma surpresa, aquele tão assim branquinho, com tatuagens pelos braços, mesmo trouxe com as mãos as calças que teimavam em cair.

“_ Os meninos andam agora tudo assim” – a voz de Hosana lá do portão com uma outra mulher que ela não conseguira identificar pela voz quem pudera ter sido. Mas será que fora ele que passara para elas comentarem?

Como é mesmo o nome dele? E deitada com a cara de vez em cima do livro, as mãos segurando o lápis com firmeza ela escreveu depois do S , por que sim, sim Olga voltara um longo tempo depois, com Vinicius na retaguarda, os dois rindo assim afogueados como se estivessem engasgados ainda pouco, mas rodopiando como acreditava ter feito a tal Duchinha – só que Olga tinha toda aquele delgado elegante – assim Olga disse assim alto, rodopiando, a cabeça toda se inclinado para trás, os cabelos caindo como cortina para trás juntamente, Olga mesmo disse:

_ Salomão, então...Salomão... não é este?

Vinicius a segurou pela cintura trazendo-a para junto dele.

_ Parece toda maravilhada com ele.

Os olhos dela tilintaram junto com os dele e disse agitando os cabelos graciosamente junto com uma risada:

_ Ciúmes daquele feioso meu jeitosinho...

Viu então, Samanta, o beliscão e o gritinho dela...

...alomão, escreveu a lápis, mas ergue-se, embora preguiçosamente, por que escutara os passos arrastados da mãe, o respirar cansado tal como a tarde cedendo dentro do grito da cigarra, inclinou-se rapidamente apanhando o livro do chão e relendo o que escrevera antes de fechá-lo num baque seco.

Rodney Aragão.