Odisséia

Era noite de chuva intensa na cidade, dona Maria trabalhava em casa de família no centro e acabara de voltar naquela noite, querendo mais era descansar, pois que o seu corpo ofegante exigia . Porém, quando se dirigiu a casa de sua vizinha Clara, onde a sua pequena filha Tâmara ficava, enquanto ia trabalhar recebeu a noticia de que ela, uma menina de cinco anos, muito ativa, ainda estava deitada no sofá improvisado como cama. Passará o dia inteiro com muita febre e dor por todo o seu corpinho, por toda a sua cabeçinha.E Clara já a tinha paliativamente medicado, mesmo assim não havia resolvido.

Em desespero a pobre mãe, vendo sua filha naquele estado, mesmo chegando sem forças, totalmente cansada e com a fome agravada olhou ao redor, como a pedir energia no escuro e sequer encontrar.Mais que depressa, meio que agoniada, tratou de agir envolvendo a sua filha numa toalha branca esgarçada carregou-a caminhando em direção ao Posto de Saúde do seu bairro, que como de praxe, segundo o vigilante de plantão estava fechado por falta de médico devido aos inúmeros assaltos, que sofreram enquanto estavam de plantão.

Sem ter muito o que esperar para se lamentar, a pobre mãe esboçou sua indignação, mas sem ter tempo certo para chorar seguiu em direção ao final de linha na mera tentativa de ir ao posto do bairro ao lado.

As suas roupas suadas, suas mãos calejadas, seus cabelos queimados e sua pele ressecada faziam par com a juventude exaurida resultado da lida diária.

Aquela mulher, mãe de pouca instrução, sem marido, sem um teto definido ou um pedido humano alcançado seguiu sem dizer nada. Sozinha naquela estrada enlameada e escura, sob o sereno da lua acalentava com o seu calor, com o palpitar do seu coração a sua pequena Tâmara, que suspirava gemendo com dificuldades em seu colo.

Enquanto muitos no mesmo horário, em suas residências iluminadas, com calçadas pavimentadas a comer e a beber com a mesa ainda farta, riem a toa e dão boa noite as suas crias, tendo a certeza que tudo está bem, dona Maria seguia em direção ao fim da linha e pedia ao condutor uma passagem, pois o que tinha de todo a sua labuta, já só dava para uma viagem.

Nos braços envelhecidos do progresso o ônibus saiu do terminal aos solavancos, aos mexes, mexes,na má vontade de trabalhar do condutor, carregando a poeira acumulada nos bancos, nas paredes do ônibus e as janelas todas fechadas por causa da chuva acabaram por aumentar a dor daquela garotinha.

Ao chegar no posto, sob uma chuva incessante a mãe, enfim esboçou um grito de alívio, como se tudo estive resolvido.

Na realidade o que os olhos vêem, o que não se resolve e os jornais não noticiam era pessoas amontoadas na portaria sufocando a atendente, mediante as suas agonias.Uma enfermeira, servidora estressada com tantas pessoas nas macas sem medicamento, a esperar que um médico de juramento resolva aparecer pelo plantão, sem direito e nem respeito as pessoas ficam largadas nos pequenos corredores, sob uma luz que mal ilumina.

Quando dona Maria foi enfim atendida a moça informara que não tinha leito, mas que ela aguardasse a troca de plantão.

Três ou quatro horas depois, lá pelas onze horas da noite, como uma afronta aquela multidão, descia de uma hailux verde uma moça toda perfumada, com a sua juventude equilibrada a entrar pelas portas do fundo do posto e a provocar a excitação daqueles que sem saber ao certo em coro, gemiam com fervor.

O alivio foi geral, pois enfim a médica de plantão aparecerá ali.Pouco tempo depois atendeu o primeiro e único paciente.Em seguida, indignada chamou a enfermeira e disse que não ia mais continuar o seu plantão, porque não iria trabalhar no calor, pois que o ar condicionado de sua sala estava com defeito. A enfermeira ainda ponderou argumentando que as pessoas estavam esperando atendimento, mas não adiantou. A doutora entrou em seu carro e como se não fosse problema dela, aquelas pobres pessoas ali, entrou em seu carro particular e sem dó seguiu rumo a sua casa no centro ou em algum residencial particular.

Poucas horas depois, no colo de dona Maria, falecia calada a doce Tâmara, como uma flor, que veio a este mundo, apenas para nos lembrar de amor. E todos os dias em qualquer parte desse nosso país, sem que a gente saiba, Marias e Marias, Josés e Josés carregam as suas cruzes e suas dores, sol a sol, sem sequer terem o rosto ensangüentado seco por uma toalha de carinho ou por uma mão da justiça.

Alberto Amoêdo
Enviado por Alberto Amoêdo em 24/05/2008
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