Incompleto

Ela estava inquieta. Mexia no celular seguidas vezes, numa necessidade perturbadora de receber uma ligação ou mensagem. Inventava várias razões para não ter obtido uma resposta: congestionamento de linhas, uma reunião de última hora, talvez um resfriado mal curado: justificativas criadas para prolongar uma falsa sensação de esperança. Apesar de tudo, não se fixava no espelho: temia o que encontraria no próprio olhar. Talvez percebesse que já não existia, talvez a ausência daquele desconhecido houvesse apagado para sempre a sua luz, talvez um sentimento novo fosse intenso demais para ser assumido.

Ela estava inquieta. A dúvida era grande demais, tirava o seu autocontrole, tomava proporções de loucura, vozes falavam dentro dela, velhas companheiras de crítica e culpa. Frases como “homem nenhum presta”, “eu não disse?”, “mulher deve manter-se pura” ecoavam como uma platéia de espanto, aceleravam o coração e enegreciam a alma. Risadas e olhares de reprovação, sensação de abandono e fracasso, solidão profunda.

Ela estava inquieta. No momento seguinte uma pequena faísca de amor – ou seria falta de amor próprio?- invadia seus poros, transparecia em doces lembranças, fazendo-a sorrir, extasiada, relembrando no corpo seus primeiros momentos de prazer. De repente, voltava a confiar em si, na vida, em Deus, crendo que ele realmente não pudera ligar. Certamente haveria uma boa explicação e ele a daria, tão cedo quanto pudesse.

Ela estava inquieta. Enquanto isso, esperava, banhando-se de luz e perfume, como uma rosa cultivada especialmente para alguém... Escovava os longos e escuros cabelos, por voltas de cem vezes, pois lera que isso lhes daria um brilho especial. Pintava os olhos de gueixa, marcando na negritude do lápis a força de um destino. A boca, vermelha, como uma fruta da estação, madura, suculenta, pedia carícias em muda linguagem; a pele morena, cintilante de desejo, transbordava murmúrios, vozes abafadas por intensas descobertas.

Ela estava inquieta. Tinha como único companheiro o som do relógio, que combinado a pulsação acelerada de suas veias conferia-lhe ares de noiva. Andava de um lado para outro, pisando firme, forte, como se precisasse de alguma forma recuperar seu chão. No canto da sala, um copo de vinho, solitário, dizia-lhe coisas cruéis, torturando, confundindo os pensamentos.

Ela estava inquieta. Diz a música: “há muitas questões que preciso saber, como você pôde me magoar assim...”. Lágrimas escorrem e molham seu vestido, gotas de alívio naquele deserto de abandono. Um lamento de dor preenche todo o mundo, ela começa a morrer um pouco, num desencarne que durará por toda a eternidade, pois em todos os futuros momentos aquele olhar indecifrável, aquela voz instigante, aquele sorriso malicioso ressurgirão.

Ela estava inquieta. Já era madrugada, a música acabou, o relógio parou, seu sonho desmoronou. Rima pobre, espírito caído, o tempo congela. Ela olha o celular, nenhum recado; a secretária, vazia, sem mensagens. Para ter certeza, olha de novo, de novo e de novo... Primeira paixão, diria sua avó; teimosia e infantilidade, pensaria sua mãe; incógnita, pensava ela. Por que optava pelo sofrimento, por que conservava esperanças, por que ainda mantinha o calor dele em seu corpo?

Ela estava inquieta. Tomou o celular nas mãos e freou o ímpeto de atirá-lo pela janela; começou a digitar uma mensagem, curta, direta, formal, sem sedução nem piedade. Felicitações por uma data comemorativa, destas que em que se trocam presentes, mas não se recorda o significado. Reluta em colocar o ponto final, pois sabe, por intuição, que não se falarão mais.

Ela estava inquieta. Mensagem enviada. Provavelmente se encontrarão anos mais tarde, numa festa de família, com crianças correndo e cachorros latindo, num misto de constrangimento e estranheza. Eles já terão embranquecido os cabelos, envelhecido a alma, sulcado o rosto com as marcas dos desencontros. Talvez algo se conserve, a grata lembrança de colchões no chão, sonhos amassados, cenário para escondidos desejos. Talvez lembrem da estreita rede cor de laranja, da misteriosa constelação de escorpião, das tossidas insistentes de um ciumento pai. Talvez lembrem de um tempo em que a brisa soprava gelada, o silêncio gritava absoluto, só reinavam os dois no universo, se descobrindo, atingindo dos seus mares o nível mais profundo.

Ela estava inquieta, mas nem tanto. Uma onda de paz banhava o seu coração, pensava nas boas lembranças, na cura que vem com o tempo e a distância. Pensava num novo amor, tranqüilo, sem barreiras, mesmo que sem paixão. Ela não estava sozinha, havia quem a amasse. Agora só precisava aprender a se amar.

Luzz
Enviado por Luzz em 23/05/2008
Reeditado em 16/11/2012
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