O trabalho da noite
A noite vestiu-se de estrelas. Estava contente, conseguira, com algum esforço, remendar outra vez aquele vestido de festa, tantas vezes usado e por isso mesmo absolutamente roto. Havia ocasiões que se vestia de cinza, quando recebia a visita da chuva. Mas, hoje deixou a lua apagadinha, só estrelinhas no seu velho vestido.
Dava pra enganar, principalmente sob as luzes da cidade, que cega os homens que a noite quer impressionar.
A ronda noturna tinha que começar.
Apressada, vestida ainda em seu robe azul claro, a noite esperava impaciente que o sol finalmente terminasse aquele tedioso espetáculo com que se despedia todos os dias. Ai, as pessoas repetitivas! Tão cansativas.
Quando o velho "astro-rei", o decadente Elvis celestial, foi se fazer travestí para o espetáculo (tedioso) da Aurora, do outro lado do mundo, a noite finalmente vestiu sua capa e foi à ronda.
Primeiro foi colher as esperanças das namoradas esquecidas, suas lágrimas de frustração, suas maldições ditas entre-dentes. Depois para as esposas atarefadas, cansadas de esperar atenção e emoção. A noite recolheu seus pensamentos dispersos.
A noite correu à casa dos velhos e recolheu suas dores reumáticas e suas lembranças falsas dos tempos de imaginada glória. Nos hospitais, a noite foi buscar a desesperança e a alegria, nas uti’s e salas de parto. Estas eram as estações que a noite mais gostava.
As rodoviárias e aeroportos eram tão fugazes! Partidas dali e daquizinho, tudo tão pertinho, o fio que produziam era tão fininho! Nos hospitais não, o fio era forte e bem igual, estações definitivas de chegada e partida, de bem-vindo e nunca-mais.
O desespero das mães que não sabem onde estão os filhos, as dores de dente, as febres malsãs.
A noite foi aos bares e cabarés, recolher as risadas tristes das prostitutas que têm a obrigação de serem alegres e dos freqüentadores que gargalham para ter como esconder a dor que lhes rasga o peito. Fosse sexta-feira, dia das amantes, ela recolheria a esperança das que querem ser esposas, mas sabem que não serão.
Madrugadinha, lá vem o velho travesti. O espetáculo da Aurora não tardaria e a noite ainda tinha muito o que fazer com os fios recolhidos na ronda; os fios que recolheu lhe dariam o mesmo trabalho que lhe dão a séculos, desde que o Bom Deus resolveu separá-la do dia; muito embora a noite reconheça que os fios que recolhe hoje são mais variados que os de antigamente, e o tecido que tece para vestir a vida – essa patroa exigente – fica cada dia mais tingido de sangue, suor e lágrimas.
Esse é o trabalho da noite, ser tecelã da vida que se vive.