NATUREZA MORTA

Natureza Morta

- “Se da fruta não posso mais me servir, pois me faltam, entre outros atributos, até os dentes, por que a fome ainda é tão intensa e a danada tanto me apetece?”.

Assim pensava Osório, velho coronel aposentado que, apesar de seus oitenta e tantos anos, babava sempre que via Filó passar pela praça desfilando um magnífico par de pernas sumariamente cobertas por um alinhadíssimo, porém extremamente curto uniforme de babá.

O velho senhor quase enfartava.

Filomena ou Filó como era conhecida pelos mais íntimos, sempre foi moça vaidosa e de beleza provocante. Não descuidava da aparência nem um instante que fosse, maquiagem impecável, roupas alinhadíssimas, mesmo que simples, e sempre muito ousadas tanto a roupa quanto à dona. Filó, entretanto, tinha um fraco. Farda; adorava homem de farda, era uma paixão inexplicável vinha de infância.

Seu Osório era proprietário de uma magnífica coleção de uniformes, herança de seus tempos de caserna e apesar dos muitos anos que contava não perdera o charme e a imponência quando se trajava por completo de coronel com direito a botões e galões dourados e até mesmo algumas medalhas fincadas no peito.

Nessas ocasiões era Filó quem babava e se assanhava toda. Fazia de tudo para atrair a atenção do pomposo herói. Queria a qualquer preço imortalizar aquela visão em seu coração e aos olhares dos que passassem.

- Bom dia, seu Osório – Provocava a moça com um sorriso malicioso disfarçado de inocente.

O incansável soldado, nessas horas, lembrava com profunda saudades das guerras que vencera nesse tipo de batalha. Ah! Como combatia bem.

- Bom dia, princesa – Era tudo que conseguia responder. Mas...Seus pensamentos foram todos censurados. Não podem entrar neste conto.

A jovem seguia dengosa, forçando sobremaneira o gingado das cadeiras e ensaiando de quando em quando um curvar, na intenção de ajeitar a criança dentro do carrinho que empurrava à sua frente. Osório buscava em vão uma trincheira para se abrigar do bombardeio de pensamentos que explodiam em sua cabeça, seu coração disparava qual artilharia antiaérea. Se tivesse, engoliria uma granada.

Após meses de um cerco incansável o intrépido coronel estava decidido, era hoje. Foi à farmácia comprou uma caixa de Viagra e três preservativos, atravessou a praça, entrou no boteco e pediu uma vodka. Pura. Entornou num só gole com dois comprimidos. Uma pinga, que é mais forte, goela abaixo. Pronto. Vamos à guerra.

Sentado no banco de sempre, aguardou. Sentia-se o próprio Patrono das Forças Armadas tamanho o garbo que ostentava.

Filó apontou no fim da rua. Gingava como nunca em direção à praça, o uniforme parecia ter encolhido ainda mais. Passou feito borboleta roçando de leve o aventalzinho nas pernas do soldado estático. Os cabelos soltos e perfumados roçaram muito suavemente o rosto de nosso herói, a essa altura já vencido e totalmente prostrado. Não movia um só músculo. Seus pensamentos estancaram, seu desejo petrificou. A alma saíra do corpo. O velho guerreiro ficou assim por horas, dias, meses, anos, aliás, está lá até hoje. Fizeram jardim a sua volta, instalaram grade de ferro e uma linda placa comemorativa.

- Bela obra de arte, comentam alguns. Parece sofrer, dizem outros. Tem cara de apaixonado, afirmam por vezes. Qual? Não passa de uma estátua, sentenciam os mais céticos.

O certo é que nunca mais se viu Filó ou qualquer outra babá passeando pela praça do coronel.

Claudio De Almeida
Enviado por Claudio De Almeida em 25/04/2008
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