ERA UMA VEZ UM VENDEIRO... DEU BODE.
ERA UMA VEZ UM VENDEIRO
... DEU BODE
Lampião de querosene aceso. Os poucos caiçaras que bebericavam cachaça, cotovelos fincados no balcão, pareciam sombras disformes contorcidas pela luz trêmula do pavio que ardia amarelo e fumeguento.
Entre goles e cusparadas, histórias de aventuras vividas no mar em mais um dia de pesca. O cheiro do fumo em corda empilhado aos rolos no fundo do armazém se confundia ao suor e à maresia, curtindo a existência de tudo e de todos no vilarejo de beira de praia perdido num tempo que ficou lá para trás.
A fumaça dos cigarros de palha bailava nesse cenário como dançarina maljeitosa envolvendo as personagens em abraços mornos e maliciosos.
Além do balcão de tábuas enegrecidas e sebentas a impotente figura do dono do negócio. Homem de meia idade, estatura avantajadíssima, cor bronze reluzente, carapinha qual algodão envelhecido. Voz rouca, quase um trovão. Só isso bastaria para torná-lo diferente dos demais, quase todos atarracados e amarelentos devorados pelas lombrigas. Entretanto, o que mais chamava a atenção naquela criatura era a proeminente saliência que brotava de sua testa, verdadeiro unicórnio em formação. Um baita calombo. Esse defeito congênito lhe valera a alcunha de Zé do Caroço, e, ao contrário do que se possa imaginar, nem o defeito era repugnante, muito menos o apelido ofendia o dono de tão extraordinário e incomum adorno.
Zé do Caroço vivia só, dizia-se viúvo. Já as más línguas insinuavam certo adultério do passado que lhe rendera o abandono de antiga amada. Figura de poucas palavras concentrava-se mais em ouvir, conhecia como ninguém a arte de se manter neutro. Nem a favor, nem contra. Com paciência de mercador ouvia desabafos, segredos e mágoas era o alento de infelizes do vilarejo, pobre de vida e de sorte.
Conhecido por todos, mas de sua vida nada se sabia. Nenhuma alma partilhava de sua intimidade, muito menos de seus afetos e desafetos. Sua história ficara no passado, em algum lugar muito distante e muito profundo.
De todas as curiosidades que cercavam o vendeiro a que mais corria de boca em boca era sobre a qualidade de sua cachaça. Bastavam dois goles e pronto... Os males, as aflições, as dores, tudo desaparecia por encanto, a vida ficava melhor e mais bonita. Coisa mesmo de estranhar...
Outro ponto que mexia com a imaginação dos freqüentadores do boteco era o fato de ninguém jamais ter visto Zé do Caroço por inteiro. Estava sempre atrás do balcão, só era conhecido da cintura para cima. Alguns até acreditavam que seus pés eram de bode! Afinal, com aquele caroço! Lógico que tais comentários eram sempre muito velados e só aconteciam quando o calor do álcool ingerido em excesso já passara em muito da conta.
Sexta-feira de tempo úmido, céu carrancudo, chovera quase todo o dia. Próximo aos pescadores que chegavam do mar, perambulava uma mulher, saída não se sabe de onde, tão carrancuda quanto o céu. Vestia negro dos pés à cabeça, nunca ninguém a vira por essas bandas. Arrepiava. Alguns pescadores chegaram a ensaiar o sinal da cruz. Perguntou, sem se dirigir a ninguém:
- Onde encontro o seu José?
Todos se entreolharam, ninguém conhecia não.
A mulher afastou-se e, aos poucos, foi sumindo na distância e na noite que se aproximava fria e solene.
- Cruz credo!
- Deus nos livre!
- Arreda!
Na venda de Zé do Caroço não se ouvia outra história nessa noite, um verdadeiro alvoroço e o dobro de cachaça derramada goela abaixo... Só para espantar o agouro e os maus pensamentos.
Quando o derradeiro freguês saiu cambaleando, as portas do armazém se fecharam pela última vez. Ninguém mais viu Zé do Caroço. Buscas foram feitas, indagações incontáveis e nada do homem, sumira para sempre. Poderia ter sido visita da morte, retorno da ex-amada, nada certo, nada confirmado. Muita especulação, muitos boatos povoaram aquelas bandas por bom tempo. Cachaça igual, nunca mais.
Restou somente o armazém com os rolos de fumo em corda abandonados e, no chão de terra batida atrás do balcão de tábuas enegrecidas, marcas que bem poderiam ser de cascos de bode.