Meu melhor dia de aula
Acordei aquele dia talvez no mais desanimado estado de todo o ano. A eminência de uma greve geral no país parecia fazer todas aquelas aulas inúteis. Para quê tanto esforço para uma prova que só iria ocorrer daqui a sabe se lá quanto tempo? E para que correr tanto para algo incerto? O trabalho que fazia duas semanas que batia a cabeça pensando em como começar, estancado no subconsciente em algum lugar poderia ficar lá por mais tempo sem que eu realmente me preocupasse com ele.
Além desta carga de desânimo eventual, tinha mais o fato daquele ser um dia em que todas as coisas bobas que você fez ou deixou de fazer voltam só por birra, só para que você se sinta um pouco Fernando Pessoa, numa poética forma de ser precocemente perdido.
Tantos anos dentro de uma universidade, e parece que o que amadureceu foram seus sentimentos, seu desencanto da vida, e não seu ser profissional. Assim tinha eu olhado o céu amanhecendo às sete naquela manhã. Andando para a aula ainda me lembrei daquela garota que eu não liguei, e não me lembro porquê. E daquela outra que eu perdi o contato tão rapidamente, esquecendo de que quando a vi tinha tido a impressão de que seríamos muito importantes na vida um do outro. Talvez em outro tempo. Assim iam passando os carros, as pessoas, e eu autômato andando entre eles. Culpei-me mais uma vez por não prestar atenção nas coisas, quando ouvi de longe uma buzina provavelmente acionada por um motorista com cara feia passando ao meu lado agora. Atravessei e uma menina com lindos olhos verdes me olhou meio preocupada, meio curiosa. Passou, também ela. Eu fiquei lembrando que seria uma das tantas pessoas que eu vou apenas cruzar por aí.
O prédio, muitas outras pessoas desconhecidas. Quando se está acabando o curso a universidade pode parecer tão solitária. Tantas caras novas e esperançosas, tantas faces com quem você parece estar perdendo o vínculo. E mais uma vez a sensação de que tudo aquilo era inútil. Sua sala depois da próxima curva do corredor do segundo andar. Como eu cheguei aqui, me pergunto; e não consigo refazer mentalmente outro percurso decorado. Esqueço. Não me sinto impelido à classe. Nem a lugar algum. Sinto-me impelido ao circo, à vida cigana, a montar uma banda e mandar às favas todo esse academicismo, me sinto jogado ao mundo, como um adolescente que quer viajar para o exterior para se encontrar, como um adulto entediado da rotina que procura uma puta na esquina. Tanto pensamento me paralisa, como sempre. Oi, alguém me diz. Não respondo nada. Pressinto algum rosto virado em minha direção inquirindo. Não vejo nada. Viro-me, desço as escadas. Vejo através da janela num ângulo novo, e noto um prédio alto, que nunca tinha percebido. Ainda não vejo as pessoas, mas já sinto meus pés indo em direção contrária à tantos outros. Olho para o chão agora. Como são engraçados os sapatos.
Saio do prédio. Se esse fosse um dia normal me sentiria perdido. Mas não. Tomo conhecimento do meu ser de uma forma tão única. Talvez não nova. Não sei, tantas coisas que já passei. Paro em um banco, escrevo um poema. Pela primeira vez não importa o que os outros pensam. Subo na árvore mais próxima e penso em minha mãe. Preciso colher flores para ela. Como não se sentir perdido depois dela ter ido tão rápido – para onde? Só queria poder ter ido com ela. Mas de alguma forma naquele dia ela estava lá, e só isso me bastava. Desço da árvore, agora com ela aqui. E posso ir aonde quiser, eu sei – ou ela me fala.
Num bar, encontro amigos. Falamos tanto. Percebo o quanto me são importantes, e sempre foram. Me noto feliz, após muito tempo. Tenho ganas de cantar. Me despeço e saio cantando ao meio dia, tão distante as aulas perdidas. Canto à minha mãe e à vida, tão distante as matérias não aprendidas.
2003 - quando eu ainda tinha aulas