O Piano
[Imagem em preto e branco]
Aquela presença me incomoda e seu som me perturba num misto indescritível de delírio e melancolia. Aquele som grave opondo-se ao agudo e concomitantemente fazendo ressoar a dor que eu não ousaria pronunciar, o sentimento que não ousaria sentir, o silêncio que não poderia suportar.
Explodo de fúria, mas não chego perto. Deixo o piano falar, deixo o piano construir a realidade da qual pertenço. Deixo o piano desenhar com sua melodia a harmonia do meu coração. Deixo o piano me ferir com o gravíssono de seu som e deixo-o levitar minh'alma com a derradeira nota inaudível.
É a profana madeira negra que me atrai. Não. É a atmosfera sagrada que me perpassa. Invade-me o dedilhar da sinfonia insuportavelmente encantadora. Vibras e és. Vibras as cordas, És o piano. Não devo deixar me levar pelo piano. Imploro por um sustenido ou bemol, imploro pela insólita fuga do ordinário. Imploro para que toda a perfeição do piano destrua minha fantasia, destrua minha dependência.
Hoje dou-te de costas. E hoje sou orgulhoso àquelas desafinadas notas. Fecho meus olhos. Mas deixo meus ouvidos abertos.