O Resgate
Ela tinha de tudo, era feliz com as coisas todas no lugar. Perfumava a casa e a vida na limpeza que repetia todas as manhãs. Não havia riqueza maior que por a mesa do café e ver os olhinhos brilharem diante os quitutes que aprendera com a avó vinda de terras distantes.
Era assim que se alegrava diariamente, nos afazeres domésticos de uma dona de casa qualquer. Tudo em ordem, todos bem nutridos e assim iam caminhando como deveria ser.
Na caixinha, guardava tantas fotos... Registros que gostava de rever. As crianças foram crescendo e os cabelos brancos, ela nem viu aparecer... No final do próximo ano, a primeira formatura, tudo certo, arrumado e planejado para o baile. O dinheiro para presentear o primogênito com um belo carro, já contava mais da metade, ia economizando como podia, afinal, era assim que ela fazia, organizava e controlava tudo na sua posição de dona do lar.
Mas os revezes da vida puseram à prova a sua capacidade de administração. Agora nada havia de concreto, aliás só havia a água malcheirosa da inundação. Tudo ficara embaixo d'água que subia rapidamente quando desesperados, abandonaram o lugar. Era uma dor tão intensa que ela não conseguia sequer chorar. Lembrou da caixinha de fotos... Meu tesouro... Precisava vê-las mais uma vez, pensou quando um grupo de voluntários se organizava para resgatar animais e pessoas vizinhas que ainda se seguravam, como se agarrassem à parcas esperanças, nos pilares do segundo andar.
Tomou coragem e pediu com a humildade que até então desconhecia em sua voz acostumada à liderar. Por favor, tragam minha caixinha de fotos que ficou na parte de cima do armário, decerto irão encontrar. É tudo que terei para, daqui para frente, me alentar.
Ao vê-los retornando, seus olhos iluminaram como há dias não era possível, caminhou com água nos joelhos até a embarcação, radiante como se esquecesse a condição de abrigada, de afetada pela enchente, de desabrigada e recém empobrecida. Recebeu das mãos dos anjos da terra, emocionada, a caixinha preto e dourada, onde estava tudo o que lhe restara... As fotos, lembranças de uma vida passada, que seria impossível resgatar.
Claudia Machado
Obs.: Trata-se de ficção porém me inspirei num caso real que vi no noticiário sobre a enchente no RS em 2024.