SOLIDÃO

Na medida em que o véu da noite se estendia sobre a cidade como as asas de um enorme pássaro, as sombras foram se acomodando em todos os cantos.

Depois da morte de D. Natalina, a casa ao lado permanecia sem morador. No terreiro, o canavial ocultava vultos e lá embaixo a rua se encontrava deserta.

Na cama do casal, Isaura colocara a seu canto a filhinha de três anos. A febre cessara. Nesse momento Blanche poderia ser comparada a um anjo, se os anjos dormissem.

Inconscientemente a mulher acompanhava as batidas do relógio, enquanto seus pensamentos vagavam em outro ponto bem distante dali, nas águas do Rio do Sono; era lá que os olhos do pescador brilhavam à espera do dourado, não percebendo que os sonhos de sua amada, divergindo dos seus, desciam à deriva pelo remanso.

"Como ele pôde?"

Ao menor ruído lá fora Isaura se alarmava, pronta para correr ao telefone. As trancas das portas não ofereciam resistência.

Um uivo repercutiu na noite fria, causando-lhe arrepios.

Um clarão penetrou pela fresta e a janela de madeira rangeu ao som do trovão. As luzes se apagaram.

O vento agitou as folhagens e a chuva desabou. Forte, no início, depois tamborilou suavemente sobre o telhado. Gotas remanescentes da calha pingaram sobre a tampa do bueiro. A enxurrada diminuiu e cessou. O tempo também pareceu parar, como tudo mais ao redor. 

Isaura relutou: talvez ela temesse que,  dormindo,  ficasse perdida e se prendesse no emaranhado das ideias. Mas acabou cedendo à fadiga e ao peso que se instalou em suas pálpebras.

Ao longe, o uivar do cão permaneceu ferindo madrugada adentro, em tempos cada vez mais espaçados, até que, finalmente, tudo silenciou. Porque os cães também se cansam de ser sozinhos. 

 

Zaira Belintani
Enviado por Zaira Belintani em 09/10/2022
Reeditado em 21/10/2023
Código do texto: T7623353
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