não acredito nele, mas que ele existe, existe
O passa-paredes tem uma expressão cômica. Ele anda pela cidade com um ar de inferioridade, como se qualquer coisa neste miserável mundo pudesse ser maior do que ele. As pessoas passam por ele com olhares indiferentes, como se não o conhecessem – e, de fato, não o conhecem.
O passa-paredes tem um objetivo claro, uma missão a ser cumprida. Ele é tão importante quanto o Rei Davi, e talvez mais sábio que o próprio Cristo. Apesar disso, não percebe-se. Sua dor é como um manto, um isolante químico que guarda seu coração de todos os amores. Não lembrava se tinha sonhos, amigos, momentos íntimos com alguém que não fosse ele mesmo. Embora não perceba, tem em seu bolso a chave para a felicidade.
Ele atravessa mais um muro, sem perceber. Desta vez, está numa escola. A sala de aula está abafada devido o calor, e a professora esquelética reclama que nunca vieram consertar o pobre ventilador. Um aluno que rabiscava o caderno com a emoção de uma lesma morta levanta o olhar, percebendo o passa-paredes. No entanto, prefere ficar em seu vômito de ideias. E baixa os olhos para o caderno. Enquanto isso, ele passa por mais um muro. Vê a diretoria. Um banheiro onde o casal manifesta seus desejos carnais. Um corredor solitário e, enfim, sai da escola.
O passa-paredes mal sabe se ele mesmo existe. Seria sua consciência uma metáfora para si mesma? Um nó borromeano de dor? Ele não sabe o que fez ontem, o que comeu, ou no que pensou. Ele só sabe que tem que terminar isso.
Um corvo emerge das profundezas das nuvens. O homem olha para ele e, então, o tempo para. As pessoas parecem estátuas, o vento se transforma num suspiro quente, mas o passa-paredes continua olhando para o corvo. Quando fica entediado, continua a andar.
As pessoas continuam estáticas. Ele não percebe. Tem um objetivo a cumprir.
Melhor passar por mais paredes.