CICLO
A escuridão do velho casebre foi quebrada pela faísca e chama do fósforo a acender o cachimbo nos lábios da idosa. Lampejos em prévia de tempestade adentraram pelas frestas sendo refletidos no gume da faca e vidro da garrafa de cachaça sobre as coxas envoltas no vestido encardido. Sentada no assoalho de madeira ela bebia na busca de aplacar o medo de estar lúcida, porque vivia assim: espasmos e espasmos de loucura. Queria esquecer as certezas que a lucidez trazia, o desejo igual feitiço que lhe fazia sair em nova excursão à procura de bebida e tabaco. O esmorecimento ébrio a fez deitar-se no chão de madeira, mas não foi suficiente para conter a certeza do que havia se tornado.
O céu despejou fúria em forma de água no mesmo instante em que as mãos ressequidas firmaram a faca e ela ensaiou movimentos de vai e vem com o objeto sobre o ventre. Mas então os pensamentos fraquejaram de vez os membros e o frenesi travou luta para empurrar sua consciência num recanto do cérebro. A mutação veio em seguida como tantas vezes acontecera, os ossos torceram-se como galhos e folhas secas. Asas negras romperam das suas costas numa aflição febril e molhada. Antes houvesse posto um fim naquilo, antes fosse corajosa para empurrar a faca de uma vez. Sabia o que estava prestes a acontecer, mas agora era tarde. Lutou o quanto pôde para conter o anúncio em forma de pio, e quando não suportou mais, abriu o bico e permitiu a explosão agourenta:
— Ai! Quem quer? Quem quer?
Ainda entre realidades teve certeza do que havia feito anos atrás.
“Eu respondi ao chamado do Matinta perera”
Lembrou-se de todas as vezes que acordou caída na mata, e de quando tentou se aproximar de alguém e foi recebida com pavor, rezas, tabaco e a palavra que mais do que nunca se tornou sua denotação: Matinta perera. Tinha certeza de que aquele era o momento derradeiro, mas qualquer esforço seu era vão.
Abrigou-se no esteio externo de um casebre e proferiu mais uma vez.
— Ai! Quem quer? Quem quer?
***
Sem conseguir dormir a jovem criança resolveu pular da rede. Havia algo na tempestade como um choro ou pedido que parecia falar dentro de sua mente. Abriu a porta e viu um pássaro empoleirado na cumeeira da casa.
— Ai! Quem quer? Quem quer?
Saiu maravilhada pela descoberta. O pássaro falava com ela. Riu e de forma brincalhona respondeu:
— Eu quero!
Sobre o chão da casa, naquela área externa, uma idosa caía em estado semiconsciente no mesmo tempo em que um pássaro, antes uma criança, ganhava a noite. Pela manhã a idosa estaria morta, porém um novo ciclo se iniciaria tendo somente a noite como testemunha.
Anos se estenderiam até que outros lábios proferissem novamente a afirmativa:
“ Eu respondi ao chamado do Matinta perera”