Amanheceu (pequeno conto da Lapa)
Os arcos brancos pela tinta nova ficaram para trás.
Seus passos indecisos suplantaram há pouco o palco da boêmia antiga. Sentia novamente as lancinantes estocadas no estômago. Espasmos lentos. Arranhava-se nas fachadas velhas dos casarões e se encolhia como um feto. Seu rosto franzido numa risada sem nexo. A longa Avenida Mem de Sá se abriu adiante para uma golfada de ar que dissipou um tanto sua aflição. Foi pior. Estava no centro nervoso de uma madrugada de sábado na Lapa rediviva. A multidão que ali se aglomerava, pulava e cantava com a música dos tambores africanos vindos da sede do “Tá na Rua”. Começo dos anos 1990. As pessoas suavam em solvência pegajosa. A umidade se impregnou ao seu desespero, descendo, indelével, por sua testa macilenta. Sentou-se na calçada sórdida esquecida e, em pânico, tentou afastar a dor e as fantasmagorias. Na morfina de um instante, se distraiu com aquele barulho desconexo para seus ouvidos antiquados. Uma barata sutil de outras eras passou e levou para o bueiro suas inconstâncias interrogativas. Agora apenas apreciava aquele cenário tão seu: a velha República da Lapa. Perante seus olhos embaçados saltou, numa confusão bem quista, um desfile de poetas embriagados, malandros (palavra derrotista) e suas navalhas afiadas, riscando, desenhando com sangue suas histórias em uma folha gasta do passado. As dançarinas dos cabarés riam e riam sobre seus ombros encardidos, entregues.
Passou o torpor ligeiro. Que pena! Arfou. Que pena! As coxas nuas das meninas novas que, desde já, demarcavam o microcosmo dos boêmios eram outras. Jovens andavam com camisas coladas ao corpo e copos de plástico. Cervejas em lata e os cigarros de loucura nas bocas. O Camisa Preta e o Meia-noite já não estavam nas portas dos botequins defendendo suas prostitutas favoritas. Noel Rosa e Wilson Batista não soltavam mais suas farpas poéticas. Gládio sonoro imortal. O amigo Ismael Silva partira. Madame Satã e Brancura nas asfixias dos escândalos homossexuais. Com esse presságio de últimos atos etéreos, também, acendeu um cigarro ordinário, amarfanhado e custoso que tirara do bolso do paletó. Viu a fumaça, em espirais de uma velha arte nova vegetal, misturar-se às últimas estrelas da eterna madrugada carioca. Amanhecia na Lapa, velha casa. Os garçons mal educados e sonolentos (isso nunca mudou) recolhiam as garrafas e os copos vazios das mesas altas do Antonio’s e do Belmonte. Um tilintar irritante rebimbava. As putinhas replicantes e os travestis recebiam sua grana, seu dízimo, e sumiam para os subúrbios. O baticum cessou e os jovens de camisas coladas ao corpo tomavam a última cerveja quente nos copos de plástico. Hora de seguir para o rumo sul da grande cidade de São Sebastião, o mártir.
Neste esvaziamento quase silente e inevitável das gerações, ninguém reparou no cadáver que apertava, entre os dedos, a guimba apagada de um cigarro barato.