Ficou contente, porque Emília aprendeu o que lhe foi ensinado. E nunca mais pensou que não devesse dar ouvidos ao que diz uma boneca. Foi por pensar como uma pessoa adulta, que a boneca Maria Emília conquistou a credibilidade de sua amiga.
— Achas que alguém vai ler a coisas que escrevo?
— Não há nada tão ruim que não sirva para alguma coisa.
— Lembro-me de um fato, quando meu pai estava prestes a rasgar o dicionário de sentenças latinas, e se deparou com estas palavras que acabas de dizer.
Emília empalideceu.
— Eu não disse que cunhei a frase. Só não sabia como explicar que não era minha.
— É fácil. Se escreveres expressões ou textos de outrem, ponha aspas. Se o discurso for oral, diga: ‘Abre aspas. ’
— Então os falantes devem abrir aspas em tudo que dizem, porque ninguém é original. Nem o primeiro homem foi original! Adão só falou depois que Deus soprou em suas narinas.
A boneca ficou satisfeita por advogar em causa própria.
— Suponhamos, que alguém leia teu livro. Para onde vão os livros depois de lidos?
— Muitos livros nem chegam a ser lidos. As pessoas os têm nas estantes para ostentar cultura, outras como fonte de pesquisa ou consulta. Nunca lidas ou consultadas, as páginas ficam amarelas, traças roem, e os livros são lançados fora. Os que tiverem a sorte de serem lidos sofrerão pena de morte, vão parar na lixeira, e serão triturados pelas engrenagens dentadas do caminhão da coleta.
— Vem vindo alguém— disse Emília — ouço o barulho de passos no soalho.
— Deve ser vovó. Finja que dorme.
A boneca cobriu-se com a tampa da caixa de sapatos. Corina se aproxima. Afere a temperatura. Ravenala tem sinais de febre.
—Tome um banho rápido em água morna, isso pode ajudar.
— Não, vovó! A febre logo passará.
Insone, Ravenala disse para si mesma: Estava certo Mário de Andrade: “O consciente grita, quando se sente a impulsão lírica...” E ela sentiu que deveria escrever tudo o que seu consciente gritava. Acomodou suavemente a caixa de sapatos em que dormia sua boneca e fechou o maleiro. Afastou o forro da cama e se deitou. Pensou no sol se pondo atrás das asas de uma gaivota, no voo rasante de uma águia. E permitiu que sua mente abrisse as portas para a grande aventura de viajar na imaginação. Estendeu a mão, alcançou as engrenagens do relógio, adiantou o tempo e situou o calendário em 1994, quando teria 15 anos. Naquele momento, reacendeu nela a lembrança de uma conversa que tivera com o pai, há muito tempo. Àquela época, ele dissera: “ Minha filha, devemos ler muitos livros para escrever um. Não vês Machado? Era um homem sábio, adquiriu conhecimento de mundo, buscando o saber na leitura e na meditação... Escreveu muitos livros. Está na hora de escreveres também o teu!”
O próprio Jeremias fazia voos literários e vestia a filha com vestes que não cabiam nele. “ Somos o geógrafo de Exupéry, cercamo-nos e vivemos no mundo que criamos em torno de nós mesmos. Temos dentro de nós uma gaivota buscando romper os limites de sua espécie, ou uma águia que se renova, afiando as garras, arrancando as penas e fortalecendo as asas para alçar novos voos. Por certo, minha filha, não haverá nova aurora, novo sol e novo dia, se não houver um homem novo a sonhar com novo céu nova terra. Mas, isso tudo depende da visão que temos de mundo, do modo de olhar as coisas. O mal observador, por exemplo, vê numa catedral apenas um monte de pedras...”
Quando Ravenala pensa que o pai encerrara o discurso, ele o retoma. “Livro é uma pedra. Tosca ou polida, é uma pedra em movimento. Toma, pois, caneta e papel e descreve o voo de uma águia ou despertar de uma gaivota. As biografias não mentem, muita gente famosa fez literatura antes dos quinze. Tens o exemplo de Coralina que aos quatorze anos publicou ‘Tragédia na Roça’. Ganhou o carinho do público, e alguns vinténs de cobre fazendo doces. Seja a aurora que tinge a negritude com o alvorecer, e o galo que canta para acordar o cancioneiro. Levante a voz do povo. É preciso que um galo cante, e outro galo levante o canto noutro terreiro.”
E naquela noite, a boneca dormiu na caixa como a menina que Ravenala fizera adormecer dentro de si mesma. Agora estava só. Sozinha a navegar no silêncio de sua imaginação. Sabia que era preciso engolir muito papiro, para encontrar o Tesouro de Bresa. Ela leu, releu e remoeu muitos livros, e era capaz de regurgitar frase por frase, ainda que lida há tempo! Aprendeu a navegar nas asas da imaginação, alçar voos a bordo de uma nave espacial; romper horizontes e ultrapassar barreiras. Temia, no entanto, não ser compreendida naquilo que escrevia. Sabia que a arte está sempre em construção. O poeta, o escritor, o artesão levanta o primeiro canto e outro galo faz a aurora de João Cabral acontecer. Nunca falta o que escrever. Basta amarrar um conto na alça do intestino de outro conto. Cantar um canto, contanto que se preste para alguma coisa.
— Isso tendo fazer. Vendo colcha de retalhos, tecida com os sonhos do povo. Vendo o canto do galo, o ciscar da galinha... (dos outros.) Vendo pintinhos de galinha, cruzada com o galo do vizinho. Meu galo não inicia o canto. Apenas levanta o canto que vem de outro terreiro
Escreveu.
E a noite passou como uma vigília que não passa.
O dia amanheceu.
A campainha toca.
— Bob!...
— Vim trazer um pedaço de bolo!
— De aniversário!?...
— Bolo comprado na padaria.
— Mas hoje não é teu aniversário.
— Ontem, foi o aniversário de minha mãe. Não tivemos convidados nem velas.
— Quantos anos?
— Ela não diz. Mas, se tenho 16!...
Riu.
— Quero construir um ensaio romanceado, que achas da ideia?
—Faça. Quebre estruturas e convenções fragilizadas. Podes escrever um livro a partir da letra de uma música, de um poema ou até mesmo de um fiapo de conversar apanhado em um boteco. O leitor espera, não necessariamente, por um final feliz, mas, no mínimo, por um desfecho coerente. Algo que seja um caldeirão fervente de cenas, cenários e ação. As digressões são cansativas. Muitos descobrem essa técnica e saltam as páginas que discorrem sobre um regato louro, simplesmente, não leem.
— Quem assim procede, acha que o autor quer encher linguiça. Ao contrário, a literatura acontece no regato louro, no descrever o indescritível, no segurar o vento com uma peneira. Aí a obra ganha estrutura de arranha-céu.
Fitaram-se em silêncio. E era possível ler o pensamento de cada um deles: “ É preciso agarrar a sombra, perseguir o vento, levantar a aurora no bico da passarada.”
— É necessário, mas nem tão preciso, — disse o outro — às vezes, desejamos ver o raio verde e enquanto não tentarmos, aquele desejo nos persegue.
— Verdade! Clarice publicava crônicas em jornais, depois as reunia em um conto e assim, viveu sua felicidade clandestina. Faça o mesmo.
— É tudo que quero! Leio livros só para falar deles. Bem ou mal. Li alguns dos quais nada pude dizer. Mas, aos dezessete anos, quando conversei com Reika sobre vidas paralelas, não pude calar-me. Como pode uma estudante abandonar o curso de filosofia para acompanhar ciganos? Sentir prazer em acomodar-se numa pedra e conversar consigo mesmo?
Ao ouvir essas coisas Robert construiu em sua mente a imagem de uma cigana sentada numa pedra. Depois, riu sozinho: ‘Dona Leide mantinha um sapo na cozinha para comer moscas. O sapo sobre uma pedra estaria filosofando?’
— De que ris? — Indagou Ravenala.
— Estava pensando no filósofo de dona Leide.
— Quem?
— Um sapo que ficava sentado numa pedra.
— Eu me casaria com o príncipe que fosse dono de um sapo filósofo.
Talvez Robert fosse o sapo, não o príncipe, ambos eram cria da mesma casa. Levantou-se e pegou na lixeira duas laudas impressas em papel ofício.
— Isto não pode ser descartado! Alguns leitores são atraídos pela docilidade das personagens, outros, pelo asco que elas provocam.
— Verdade, uns torcem para que Ramayana morra logo; outros, que ela abandone o mundo das drogas e se case com Leonardo.
— Não gosto de Ramayana, mas ela fez parte de nosso tempo de colegial! Dividimos tempo precioso na Quinta da Boa Vista e em muitas praias do Rio de Janeiro.
Sem mais tecer considerações a respeito de Ramayana, Robert rabiscou no papel a palavra: Piracema e apresentou a Ravenala.
— Veja: retirando-se o “p” iracema salta no meio dos borbotões de espuma.
— Ora, Bob! Alencar quis enaltecer a beleza da América, não da índia Iracema. Não percebeste que Iracema é anagrama de América? É só trocar as letras de lugar.
— Nunca tinha reparado! Não sobra nem uma letra.
— Nem falta!
Imaginou-se conduzida por Robert a uma cabana nas margens do rio. Apanhou grossa mecha de cabelos que lhe cobria os seios, e jogou para traz. E naquele dia...
Naquele dia Robert voltou pensativo: “Como seria a vida em família: casar, ter filhos.
Família...
Estaria seu pai ainda vivo? Dona Leide falava vagamente de certo intelectual... E referia-se a ele como o finado seu pai, sem citar o nome.
Ravela interrompeu o monólogo que Robert estabelecia consigo mesmo.
— Se me julgas digna da tua amizade, almoça em minha casa no dia dos pais — disse ela imitando gestos de uma moça elitizada do século passado.
— Claro! Posso chegar ao meio-dia?
— Pode vir às onze horas.
Pensou: “ Se viesses para o café da manhã, já à noite, ao recolher-me no leito, contaria as horas que faltam para o dia amanhecer.”
Era meio-dia quando Robert chegou com dona Leide à casa do senhor Jeremias. Na sala de estar, não havia nenhuma rosa e a pouca prosa não favorecia o avançar das horas. Enquanto aguardavam a voz que anuncia: “A mesa é posta”, Ravenala estruturava frases como: Nunca me falaste de teu pai!... Não, esta não!... Melhor levá-lo a conhecer meu quarto. Mostrar-lhe a Barbie vestida de noiva, que ganhei quando fiz doze anos. “E se Robert perguntar: Ainda brincas de boneca?” Ravenala correria o risco de passar por este vexame, contanto que tocasse o coração do Bob, sem machucar.
— Olha como é linda!
— Quem são os pais? Por certo a mãe é você. E o pai?
— Bem, no reino das bonecas...
— Também no reino das bonecas, deve haver uma família estruturada: pai, mãe e filhos.
— Certamente!
A linha de raciocínio arquitetada por Ravenala gerou clima propício para colocar seu plano em ação.
— Nunca me falaste de teu pai!
— Não o conheci. Minha mãe diz que meu pai faleceu quando eu tinha poucos meses. Mas nunca me levou para ver o túmulo dele.
Certa vez, ela confidenciou que há muitos anos, estivera no cemitério e sentiu uma força que vinha das entranhas da terra, tentando puxá-la para dentro da tumba. Teve medo. Foi a última vez que visitou o finado.
Faz tanto tempo, disse ela, não saberia mais localizar o túmulo ... “Não tem um epitáfio, uma lousa, alguma coisa que identifique o morto?” — perguntei. Mas ela desconversou: ‘Talvez nem mais uma cruz!’ — E o nome dele?— insisti — ‘Pode chamá-lo de Chiquinho ou Francisco, José Carlos Tucunaré, ou um cisco qualquer. Chame-o como quiseres. Pai ausente não tem nome.’ Dona Leide sequer ousava pronunciar o nome do pai de seu filho. E, depois da conversa sobre uma força estranha que tentou sugar sua mãe para as entranhas da terra, Robert, passou a imaginar o cemitério como sendo morada de fantasmas.
— Nunca o procuraste?
— Procuro-o entre os vivos. Não creio que ele esteja morto.
O diálogo foi interrompido pelo tão esperado convite: “A mesa é posta.”
— Primeiro os convidados — disse Jeremias.
— Primeiro o homenageado, respondeu dona Leide, mãe de Robert.
A presença de Leide no almoço ajantarado, não pareceu tão desconcertante quanto prometia. Ela falou pouco. E ao fartar-se largamente, agradeceu e saiu. Robert ficou. Não se retiraria enquanto não conhecesse mais uma página da história de vida na fazenda Campo Grande.
— Belos tempos!...disse Corina, acomodada confortavelmente numa cadeira preguiçosa, na sal de estar.
Na fazenda Campo Grande tudo respirava poesia. À tardinha, pálidos raios do ocaso tocavam suavemente as brancas asas de uma garça., e em noites de lua clara, a peonada se reunia no alpendre para ouvir estórias que Generoso contava, as músicas que ele cantava ao som de sua viola.
Faz tanto tempo...
— Achas que alguém vai ler a coisas que escrevo?
— Não há nada tão ruim que não sirva para alguma coisa.
— Lembro-me de um fato, quando meu pai estava prestes a rasgar o dicionário de sentenças latinas, e se deparou com estas palavras que acabas de dizer.
Emília empalideceu.
— Eu não disse que cunhei a frase. Só não sabia como explicar que não era minha.
— É fácil. Se escreveres expressões ou textos de outrem, ponha aspas. Se o discurso for oral, diga: ‘Abre aspas. ’
— Então os falantes devem abrir aspas em tudo que dizem, porque ninguém é original. Nem o primeiro homem foi original! Adão só falou depois que Deus soprou em suas narinas.
A boneca ficou satisfeita por advogar em causa própria.
— Suponhamos, que alguém leia teu livro. Para onde vão os livros depois de lidos?
— Muitos livros nem chegam a ser lidos. As pessoas os têm nas estantes para ostentar cultura, outras como fonte de pesquisa ou consulta. Nunca lidas ou consultadas, as páginas ficam amarelas, traças roem, e os livros são lançados fora. Os que tiverem a sorte de serem lidos sofrerão pena de morte, vão parar na lixeira, e serão triturados pelas engrenagens dentadas do caminhão da coleta.
— Vem vindo alguém— disse Emília — ouço o barulho de passos no soalho.
— Deve ser vovó. Finja que dorme.
A boneca cobriu-se com a tampa da caixa de sapatos. Corina se aproxima. Afere a temperatura. Ravenala tem sinais de febre.
—Tome um banho rápido em água morna, isso pode ajudar.
— Não, vovó! A febre logo passará.
Insone, Ravenala disse para si mesma: Estava certo Mário de Andrade: “O consciente grita, quando se sente a impulsão lírica...” E ela sentiu que deveria escrever tudo o que seu consciente gritava. Acomodou suavemente a caixa de sapatos em que dormia sua boneca e fechou o maleiro. Afastou o forro da cama e se deitou. Pensou no sol se pondo atrás das asas de uma gaivota, no voo rasante de uma águia. E permitiu que sua mente abrisse as portas para a grande aventura de viajar na imaginação. Estendeu a mão, alcançou as engrenagens do relógio, adiantou o tempo e situou o calendário em 1994, quando teria 15 anos. Naquele momento, reacendeu nela a lembrança de uma conversa que tivera com o pai, há muito tempo. Àquela época, ele dissera: “ Minha filha, devemos ler muitos livros para escrever um. Não vês Machado? Era um homem sábio, adquiriu conhecimento de mundo, buscando o saber na leitura e na meditação... Escreveu muitos livros. Está na hora de escreveres também o teu!”
O próprio Jeremias fazia voos literários e vestia a filha com vestes que não cabiam nele. “ Somos o geógrafo de Exupéry, cercamo-nos e vivemos no mundo que criamos em torno de nós mesmos. Temos dentro de nós uma gaivota buscando romper os limites de sua espécie, ou uma águia que se renova, afiando as garras, arrancando as penas e fortalecendo as asas para alçar novos voos. Por certo, minha filha, não haverá nova aurora, novo sol e novo dia, se não houver um homem novo a sonhar com novo céu nova terra. Mas, isso tudo depende da visão que temos de mundo, do modo de olhar as coisas. O mal observador, por exemplo, vê numa catedral apenas um monte de pedras...”
Quando Ravenala pensa que o pai encerrara o discurso, ele o retoma. “Livro é uma pedra. Tosca ou polida, é uma pedra em movimento. Toma, pois, caneta e papel e descreve o voo de uma águia ou despertar de uma gaivota. As biografias não mentem, muita gente famosa fez literatura antes dos quinze. Tens o exemplo de Coralina que aos quatorze anos publicou ‘Tragédia na Roça’. Ganhou o carinho do público, e alguns vinténs de cobre fazendo doces. Seja a aurora que tinge a negritude com o alvorecer, e o galo que canta para acordar o cancioneiro. Levante a voz do povo. É preciso que um galo cante, e outro galo levante o canto noutro terreiro.”
E naquela noite, a boneca dormiu na caixa como a menina que Ravenala fizera adormecer dentro de si mesma. Agora estava só. Sozinha a navegar no silêncio de sua imaginação. Sabia que era preciso engolir muito papiro, para encontrar o Tesouro de Bresa. Ela leu, releu e remoeu muitos livros, e era capaz de regurgitar frase por frase, ainda que lida há tempo! Aprendeu a navegar nas asas da imaginação, alçar voos a bordo de uma nave espacial; romper horizontes e ultrapassar barreiras. Temia, no entanto, não ser compreendida naquilo que escrevia. Sabia que a arte está sempre em construção. O poeta, o escritor, o artesão levanta o primeiro canto e outro galo faz a aurora de João Cabral acontecer. Nunca falta o que escrever. Basta amarrar um conto na alça do intestino de outro conto. Cantar um canto, contanto que se preste para alguma coisa.
— Isso tendo fazer. Vendo colcha de retalhos, tecida com os sonhos do povo. Vendo o canto do galo, o ciscar da galinha... (dos outros.) Vendo pintinhos de galinha, cruzada com o galo do vizinho. Meu galo não inicia o canto. Apenas levanta o canto que vem de outro terreiro
Escreveu.
E a noite passou como uma vigília que não passa.
O dia amanheceu.
A campainha toca.
— Bob!...
— Vim trazer um pedaço de bolo!
— De aniversário!?...
— Bolo comprado na padaria.
— Mas hoje não é teu aniversário.
— Ontem, foi o aniversário de minha mãe. Não tivemos convidados nem velas.
— Quantos anos?
— Ela não diz. Mas, se tenho 16!...
Riu.
— Quero construir um ensaio romanceado, que achas da ideia?
—Faça. Quebre estruturas e convenções fragilizadas. Podes escrever um livro a partir da letra de uma música, de um poema ou até mesmo de um fiapo de conversar apanhado em um boteco. O leitor espera, não necessariamente, por um final feliz, mas, no mínimo, por um desfecho coerente. Algo que seja um caldeirão fervente de cenas, cenários e ação. As digressões são cansativas. Muitos descobrem essa técnica e saltam as páginas que discorrem sobre um regato louro, simplesmente, não leem.
— Quem assim procede, acha que o autor quer encher linguiça. Ao contrário, a literatura acontece no regato louro, no descrever o indescritível, no segurar o vento com uma peneira. Aí a obra ganha estrutura de arranha-céu.
Fitaram-se em silêncio. E era possível ler o pensamento de cada um deles: “ É preciso agarrar a sombra, perseguir o vento, levantar a aurora no bico da passarada.”
— É necessário, mas nem tão preciso, — disse o outro — às vezes, desejamos ver o raio verde e enquanto não tentarmos, aquele desejo nos persegue.
— Verdade! Clarice publicava crônicas em jornais, depois as reunia em um conto e assim, viveu sua felicidade clandestina. Faça o mesmo.
— É tudo que quero! Leio livros só para falar deles. Bem ou mal. Li alguns dos quais nada pude dizer. Mas, aos dezessete anos, quando conversei com Reika sobre vidas paralelas, não pude calar-me. Como pode uma estudante abandonar o curso de filosofia para acompanhar ciganos? Sentir prazer em acomodar-se numa pedra e conversar consigo mesmo?
Ao ouvir essas coisas Robert construiu em sua mente a imagem de uma cigana sentada numa pedra. Depois, riu sozinho: ‘Dona Leide mantinha um sapo na cozinha para comer moscas. O sapo sobre uma pedra estaria filosofando?’
— De que ris? — Indagou Ravenala.
— Estava pensando no filósofo de dona Leide.
— Quem?
— Um sapo que ficava sentado numa pedra.
— Eu me casaria com o príncipe que fosse dono de um sapo filósofo.
Talvez Robert fosse o sapo, não o príncipe, ambos eram cria da mesma casa. Levantou-se e pegou na lixeira duas laudas impressas em papel ofício.
— Isto não pode ser descartado! Alguns leitores são atraídos pela docilidade das personagens, outros, pelo asco que elas provocam.
— Verdade, uns torcem para que Ramayana morra logo; outros, que ela abandone o mundo das drogas e se case com Leonardo.
— Não gosto de Ramayana, mas ela fez parte de nosso tempo de colegial! Dividimos tempo precioso na Quinta da Boa Vista e em muitas praias do Rio de Janeiro.
Sem mais tecer considerações a respeito de Ramayana, Robert rabiscou no papel a palavra: Piracema e apresentou a Ravenala.
— Veja: retirando-se o “p” iracema salta no meio dos borbotões de espuma.
— Ora, Bob! Alencar quis enaltecer a beleza da América, não da índia Iracema. Não percebeste que Iracema é anagrama de América? É só trocar as letras de lugar.
— Nunca tinha reparado! Não sobra nem uma letra.
— Nem falta!
Imaginou-se conduzida por Robert a uma cabana nas margens do rio. Apanhou grossa mecha de cabelos que lhe cobria os seios, e jogou para traz. E naquele dia...
Naquele dia Robert voltou pensativo: “Como seria a vida em família: casar, ter filhos.
Família...
Estaria seu pai ainda vivo? Dona Leide falava vagamente de certo intelectual... E referia-se a ele como o finado seu pai, sem citar o nome.
Ravela interrompeu o monólogo que Robert estabelecia consigo mesmo.
— Se me julgas digna da tua amizade, almoça em minha casa no dia dos pais — disse ela imitando gestos de uma moça elitizada do século passado.
— Claro! Posso chegar ao meio-dia?
— Pode vir às onze horas.
Pensou: “ Se viesses para o café da manhã, já à noite, ao recolher-me no leito, contaria as horas que faltam para o dia amanhecer.”
Era meio-dia quando Robert chegou com dona Leide à casa do senhor Jeremias. Na sala de estar, não havia nenhuma rosa e a pouca prosa não favorecia o avançar das horas. Enquanto aguardavam a voz que anuncia: “A mesa é posta”, Ravenala estruturava frases como: Nunca me falaste de teu pai!... Não, esta não!... Melhor levá-lo a conhecer meu quarto. Mostrar-lhe a Barbie vestida de noiva, que ganhei quando fiz doze anos. “E se Robert perguntar: Ainda brincas de boneca?” Ravenala correria o risco de passar por este vexame, contanto que tocasse o coração do Bob, sem machucar.
— Olha como é linda!
— Quem são os pais? Por certo a mãe é você. E o pai?
— Bem, no reino das bonecas...
— Também no reino das bonecas, deve haver uma família estruturada: pai, mãe e filhos.
— Certamente!
A linha de raciocínio arquitetada por Ravenala gerou clima propício para colocar seu plano em ação.
— Nunca me falaste de teu pai!
— Não o conheci. Minha mãe diz que meu pai faleceu quando eu tinha poucos meses. Mas nunca me levou para ver o túmulo dele.
Certa vez, ela confidenciou que há muitos anos, estivera no cemitério e sentiu uma força que vinha das entranhas da terra, tentando puxá-la para dentro da tumba. Teve medo. Foi a última vez que visitou o finado.
Faz tanto tempo, disse ela, não saberia mais localizar o túmulo ... “Não tem um epitáfio, uma lousa, alguma coisa que identifique o morto?” — perguntei. Mas ela desconversou: ‘Talvez nem mais uma cruz!’ — E o nome dele?— insisti — ‘Pode chamá-lo de Chiquinho ou Francisco, José Carlos Tucunaré, ou um cisco qualquer. Chame-o como quiseres. Pai ausente não tem nome.’ Dona Leide sequer ousava pronunciar o nome do pai de seu filho. E, depois da conversa sobre uma força estranha que tentou sugar sua mãe para as entranhas da terra, Robert, passou a imaginar o cemitério como sendo morada de fantasmas.
— Nunca o procuraste?
— Procuro-o entre os vivos. Não creio que ele esteja morto.
O diálogo foi interrompido pelo tão esperado convite: “A mesa é posta.”
— Primeiro os convidados — disse Jeremias.
— Primeiro o homenageado, respondeu dona Leide, mãe de Robert.
A presença de Leide no almoço ajantarado, não pareceu tão desconcertante quanto prometia. Ela falou pouco. E ao fartar-se largamente, agradeceu e saiu. Robert ficou. Não se retiraria enquanto não conhecesse mais uma página da história de vida na fazenda Campo Grande.
— Belos tempos!...disse Corina, acomodada confortavelmente numa cadeira preguiçosa, na sal de estar.
Na fazenda Campo Grande tudo respirava poesia. À tardinha, pálidos raios do ocaso tocavam suavemente as brancas asas de uma garça., e em noites de lua clara, a peonada se reunia no alpendre para ouvir estórias que Generoso contava, as músicas que ele cantava ao som de sua viola.
Faz tanto tempo...