AMOR NO TREM SÃO ROQUE-JEQUIÉ. Série Verdades...
AMOR NO TREM SÃO ROQUE-JEQUIÉ... Série Verdades que eu conto
Estava com 20 anos de idade, em plena passagem da adolescência para o adultério, isto é, até então encarava o namoro como algo sagrado. Nada de traições, nada de mentiras, nada de enganos... Tinha que ir de Salvador a Poções, para ver meu pai, passar uns dias com ele; e o melhor transporte seria o ônibus. Encarar uma viagem pela Rio-Bahia por quatorze horas ou mais, uma vez que a estrada em obras, tinha trechos de cascalho, buracos, poeira e pouco asfalto...
Eu andava um pouco angustiado, triste, curtindo a perda de um grande amor, fruto da insensibilidade do seu pai que a tiraria de mim como se eu fosse um mal para ela; logo eu, que tanto a amava... Enfim, ele venceu... Transferiu-se com a família para o Rio de Janeiro e os meus sonhos... perderam-se na vida...
Falei com minha linda mãe, sobre a viagem e ela brincou comigo. – Rico, por que você não faz uma viagem de navio e trem? E completou, - vá de navio até São Roque e de lá para Jequié! Talvez seja melhor para quem precisa de inspiração. Vá e leve seu violão, meu filho...
Eu bem sabia o que ela me queria dizer... Divirta-se, filho...
E assim o fiz.
Embarquei em uma navio da Navegação Bahiana numa sexta-feira de verão bem cedinho... Dia amanhecendo, naquela maravilha da Baía de Todos os Santos, que Américo Vespucci localizou e batizou em 1º de novembro de 1501... Vistas esplêndidas em todos os quadrantes, água límpida, ora verde claro ora azul e eu, no convés da embarcação, curtindo a travessia de pouco mais de uma hora, lembrava-me quantas e quantas vezes havia feito esta mesma viagem, quando a rodovia não existia, pelo menos em condições de tráfego e nem as linhas de ônibus tinham sido criadas, fato que acontecera recentemente...
Chegando próximo ao cais de São Roque o apito forte do navio... aviso alegre de quem chega e o alerta para quem vai embarcar na viagem de volta a Salvador...
Sempre tive grande admiração pelas viagens marítimas e ferroviárias. Pena que o governo brasileiro tenha deixado de lado as ferrovias e as hidrovias para favorecer a indústria automobilística e de veículos de transporte de cargas que, paulatinamente, foram enchendo as estradas mal conservadas, carregando as riquezas do nosso país...
Em São Roque estava lá a minha espera a “Maria Fumaça”, ê saudade dos meus tempos de menino. Invariavelmente, fazia duas ou três viagens a Salvador por ano, sempre com a minha mãezinha, que me carregava pra onde ia e, quando questionada porque levava o mesmo filho, dizia orgulhosa: Rico adora viajar comigo e não me aborrece nem é inconveniente. Tudo pra ele está bom, não reclama de nada e me ajuda em tudo o que preciso sem que eu peça. Nós nos entendemos muito bem. Aí, me abraçava e beijava, e acariciava meus cabelos...
Essas lembranças me ocorriam enquanto me dirigia com a mala na mão e o violão à tiracolo, no curto trajeto entre o cais do porto e a estação, que dava, no máximo uns cem metros...
Embarquei no Trem com a passagem na mão e havia alguns lugares vazios junto às janelas. Coloquei a mala e o violão no bagageiro, na parte superior do vagão, quase por sobre minha própria cabeça e sentei-me naquela poltrona alcochoada, de espuma e molas; uma delícia...
Quando o Trem deu aquele apito característico da Partida, entraram algumas pessoas que certamente se atrasaram para a viagem. Um homem, uma senhora, uma moça de seus 17 anos e um garoto aparentando 4 anos.
O casal sentou-se numa poltrona dupla mais na frente do vagão, enquanto a moça procurava uma poltrona, cuja parte da janela estivesse vaga. Não encontrou, pois àquela altura, o vagão estava quase lotado e as poucas vagas eram de corredor. Também não havia moças no vagão, algumas senhoras, a maioria acompanhada dos maridos e outras com filhos, além de passageiros homens desacompanhados.
Ela então veio em minha direção como a suplicar o meu lugar com os olhos. Imediatamente, mas de forma bem sutil, levantei-me e ofereci o meu lugar. Ela aceitou e acomodou-se. Aí eu comecei a me insinuar perguntando se ela preferia estar só ou se eu poderia ficar na sua companhia. Ela sorriu e gracejou:
- Além de oferecer o lugar, ainda quer livrar-se de mim?
- Não senhorita, quis apenas ser gentil e não incomodá-la, respondi e fui logo ao assunto.
- já que vamos viajar por algumas horas juntos, gostaria de me apresentar: meu nome é Ricardo, sou professor e estudante de Direito. – Ah, que prazer, Ricardo, meu nome é Sandra Maria e sou estudante do curso Científico, pretendo fazer enfermagem...
Daí em diante, a viagem foi uma maravilha... Como eu conhecia todas as paradas, avisava quantos minutos faltavam para o trem chegar á próxima estação e, em algumas dessas ocasiões, ela alertava os pais sobre a próxima parada.
Logo na primeira estação, em Nazaré das Farinhas, nós descemos e eu lhe ofereci um mingau de milho delicioso que uma “bahiana” servia, com polvilho de canela...
– Está uma delícia, Ricardo... –
- É Sandrinha, um pouco quente, mas muito gostoso...
Voltamos para nossos assentos. Antes, ela parou para conversar com os pais que me apresentou dizendo: Pai, ele é professor e estudante de Direito e o pai sorriu, apertou minha mão e ficamos amigos rapidamente.
O Trem parou na segunda estação, mas nós ficamos sentados. Na terceira parada, em Santo Antonio de Jesus, descemos para almoçar e ao final, o pai dela não me deixou pagar a conta. – Calma, garoto, deixe esta para mim...gracejou.
Em nossa conversa, constatamos que o destino dela era Jequié, que era o ponto final da linha do Trem, enquanto eu em Jequié, ainda teria que pegar um ônibus para Poções...
- Ora, Ricardo, você então vai continuar a viagem...
- Vou ver meu pai, que está à minha espera...
Pensei um pouco e arrisquei:
- Por quanto tempo vocês ficam em Jequié?
- Bem, acho que por um mês ou talvez um pouco menos. Meu pai está de férias, ele é Oficial de Justiça em Salvador. Depois eu procuro saber e voltamos a falar...
- Eu poderia antecipar minhas férias em dois ou três dias e visitá-los em Jequié. Lá moram os meus padrinhos Angelina e Camilo Sarno e nos queremos muito bem, aproveitarei também para revê-los...
- Então vou deixar nosso endereço e você marca o dia que vem nos visitar...
Nossa conversa evoluiu e o tempo foi passando, ora conversando sobre o seu colégio em Salvador (ICEIA), o mesmo em que fiz parte do ginásio e o magistério e passamos a recordar de alguns colegas do meu tempo. Para minha surpresa, alguns ainda continuavam lá, fazendo política estudantil. Alguns eram dois, três anos mais velhos que eu... E ela os conhecia de vista porque participavam do Grêmio.
- Fui presidente do Grêmio por um mandato de dois anos, falei. Quando saí apoiei Walter Villasboas que se elegeu. Passei o cargo para ele e estava terminando o magistério, ia fazer vestibular, nunca mais pude ir visitar o colégio. As vezes que lá voltei foi para pegar documentos, diploma, histórico escolar, atestado, etc...
- Bem que eu vi seu nome numa placa do bebedouro elétrico, só achei esquisito o nome... Massimo...
- Tem razão, meu nome é italiano e Massimo é o primeiro nome do meu pai... Ricardo é o primeiro nome do meu avô materno...
O Trem apitou duas vezes e a próxima estação era Santa Inês. Já havíamos passado por Laje, Mutuípe, Jequiriçá, agora chegávamos a Santa Inês, já no final da tarde... Descemos e comemos beiju de coco e bebemos suco de goiaba... Voltamos e continuamos nossa conversa.
Ela ia hospedar-se na casa de um tio, irmão do seu pai e a esta altura, já tínhamos combinado a data do nosso reencontro. Como o trem ia chegar mais das dez da noite em Jequié, eu teria que dormir em um hotel e pegar o ônibus de manhã cedo para chegar em Poções antes do almoço, pois meu pai estava me esperando e eu não poderia frustrá-lo.
Quando anoiteceu, estávamos entre Santa Inês e Itaquara. Depois o trem pararia em Jaguaquara, Baixão e, finalmente, em Jequié.
Aí eu peguei em sua mão e passei a acariciá-la, arrisquei uns beijinhos na mão, depois no rosto e senti que ela estava mais preocupada que seus pais vissem do que mesmo com as minhas investidas. A escuridão nos favorecia e passamos a nos beijar sem cerimônia, até que, de repente, senti uma mão bater-me de leve no ombro. Era seu pai...
Perguntou qual a próxima estação e o tempo que ia levar porque o seu filhinho que tivera enjôos no início da viagem, havia melhorado e estava precisando fazer um lanche. Os biscoitos e o leite que a mãe trouxera o garoto não queria.
– Eu quero é lanche do restaurante, resmungava o menino.
Quando paramos em Jaguaquara, descemos para fazer um lanche e a Sandrinha conversou baixinho com seus pais. Quando subimos ela disse que o pai havia ralhado sobre o namoro.
– Você mal conhece o rapaz e já está aos beijos? Teria dito em tom de aborrecimento...
- E agora, minha linda, como faremos?
- Você disse que estamos a duas horas de Jequié. Vamos ser mais discretos, mas não acho que estejamos fazendo nada de mais...
- Concordo plenamente disse-lhe feliz e continuamos a sessão “amor antes que acabe o mundo”...
Em Jequié nos despedimos, ali mesmo na estação. Trocamos forte abraço e quando a vi dobrando a esquina, senti grande aperto no coração...
Desavisado, não pude cumprir o combinado para visitá-la. Quando cheguei a Jequié, ela já havia partido para Salvador com a família. A casa dos tios encontrava-se fechada e os vizinhos não sabiam informar nada.
Não havia anotado seu endereço em Salvador, uma cidade grande. Isso, nos idos de 1960. Tentei vê-la no ICEIA, mas tinha-se transferido para outro colégio e a secretaria não quis informar qual o seu colégio atual ou seu endereço residencial, alegando contrariar normas de segurança. O tempo foi passando e acabei embarcando em outras aventuras, sempre com aquela esperança de reencontrá-la um dia.
Hoje, com mais de 60 anos, depois de ter passado por tantos enganos e desenganos, não entendo porque nunca mais a veria nesta vida!...