996-ZACARIAS
Preto Velho.
Zacarias é preto velho, tão velho que deve ter sido escravo. Mora na fazenda do Doutor Juventino e não tem papas na língua. De avançada idade, presta atenção em tudo, e sempre tem um comentário apropriado para as mais diversas situações. Suas observações são engraçadas, mas no fundo, no fundo, mostram uma sabedoria de vida difícil de se encontrar hoje em dia.
Preto Falso
— Pois é, sô Juventino, hoje tem muito preto farso.
— Ora, Zacarias, você está julgando mal. Tem muito preto bom, como tem muito branco que não presta.
— Tô falando é dos preto desbotado, dos preto que num são legítimo.
— E como é que você distingue os pretos falsos dos pretos legítimos?
— É só oiá na cara. Preto que é preto, preto legítimo, tem o nariz esparramado na cara inteira.
A Machadinha
— Zacarias, é preciso que você conserte a cerca de bambu do galinheiro.
— Sim, dotô. Vou dá um pulo inté o sítio do seu Cardoso, mode pedi emprestada aquela machadinha afiada que ele tem. Boa pra cortá bambu sem lascá.
Ao chegar ao sítio de Seu Cardoso, Zacarias faz o pedido em nome do patrão.
— Seu Cardoso, o sinhô pode me imprestá aquela machadinha que o sinhô tem? Tôu pricisando reformá a cerca de bambu e...
— Óia, Zacarias, num posso te emprestar a machadinha não. Aquela machadinha é de estimação, foi do meu pai, e num sai daqui do sítio, não.
— Ô, seu Cardoso, mi perdoando a liberdade, mais o sinhô tá bão mais é de morá lá em Beraba.
— Uai, porque você diz isso, Zacarias?
— É que o pessoar de lá num gosta de imprestá nada pra ninguém. Lá em Beraba eles num impresta nem uma canequinha de pó de café, nem uma xicrinha de açúcar. Lá tá assim de gente imprestáver.
A Caixa Preta
Zacarias faz as compras da semana na loja de secos e molhados do Chico Italiano. O velho comerciante, recém-chegado de uma viagem à velha pátria, havia trazido, entre outras novidades, um gramofone, peça única na cidade nos idos de 1930, que impressionava a todos os fregueses.
Zacarias colocava suas compras no embornal quando italiano lhe perguntou, apontando para a caixa preta com a grande corneta, colocada num local de destaque, sobre o balcão:
— Você sabe o que é isto, Zacarias?
Zacarias olhou desconfiado para a estranha coisa, balançou a cabeça de um lado para o outro e disse:
— Tô vendo uma caixa preta com uma goela escancarada.
Seu Chico começa então a mexer na máquina. Dá corda, tocando a manivela, e ajusta a agulha de metal no local apropriado. Coloca um disco de ópera italiana sobre o prato giratório e sentou-se para ouvir.
Aos primeiros sons, Zacarias ficou alerta. Nunca tinha visto uma caixa que tocava música. Quando a voz de soprano começou a sair, ampliada pela corneta, o preto levou um susto, arregalou os olhos e, num pulo, passou pela porta, caindo na rua e saindo a correr. Sobre o balcão ficou o embornal meio cheio dos gêneros comprados.
Seu Chico achou graça, mas continuou ouvindo o trecho da “Traviata”, até o término do disco. Como Zacarias não retornasse após meia hora da fuga, falou com Ditinho, um garoto que costumava zanzar por ali:
— Vai procurar o Zacarias. Fala pra ele vir buscar as compras.
Daí a pouco, chega Zacarias, ainda com os olhos esbugalhados.
— Pode chegar, Zacarias. Já desliguei o gramofone. Mas, porque você levou tanto susto?
— Cruz-credo, seu Chico, Nunca qui eu ia pensar que duma caixa preta saísse esses grito de gente branca.
ANTONIO GOBBO