982-VINGANÇA FEITA DE BARRO

Quem ouve o trinado sonoro do joão-de-barro dificilmente o associará com o comportamento cruel quando percebe que a companheira o está traindo. O passarinho faz o que nenhum outro animal faz. Dando vaza ao seu doentio zelo amoroso, o macho empareda a companheira na própria casa que fizera com capricho de um habilidoso pedreiro. E tendo salvado, desta forma, a própria honra, parte em busca de nova companheira.

Jamais poderia acreditar, não tivesse sido testemunha ocular de tal comportamento típico de homem de mau caráter. Vi com meus próprios olhos, quando passei as férias numa fazenda de meu primo, num verão muito quente, lá pelas bandas do Tocantins.

— Veja, o joão-de-barro está reformando sua casa. — Disse ao primo, quando vi o passarinho levando mais barro e gravetos para a casinha.

— Qual o quê! Ele está é preparando pra emparedar a companheira. Preste atenção no que vai acontecer.

Sem deixar de emitir seus gorjeios e trinados, o passarinho ia e vinha de uma poça d’água , levando barro para dentro da casita. A fêmea permanecia por ali, com ar de sonsa, como se nada tivesse a ver com a urgência do companheiro. Talvez ela não soubesse mesmo o que estaria para acontecer. Quem sabe seria apenas desconfiança do macho e ela, pobrezinha inocente, fazia companhia ao algoz. De vez em quando saltava e fazia volteios ao redor do joão-de-barro, querendo agradar o companheiro.

Enfim, chegada a hora, eis que o macho empurra a fêmea para dentro da casa e, com ligeiros movimentos de seu bico experiente, tapa o buraco, emparedando a companheira. Feito o serviço, abandona a casa, num vôo elegante, em direção à mata, onde, por certo, irá começar nova vida.

Mas, ou porque estava com pressa, ou assustado com a minha presença de observador, deixa um pequenino buraco por tapar. Não era suficiente sequer para a joaninha colocar a cabeça de fora. Mas ela, agora consciente de sua situação, não entrega os pontos. Com bicadinhas delicadas, vai aumentando o buraquinho enquanto o barro não está de todo seco, e em poucas horas de labor, faz uma abertura suficiente o bastante para se livrar do cativeiro fatal. Por atavismo ou costume, permanece morando sozinha na casa. Quem sabe, à espera do retorno de seu algoz?

Na mata, o joão-de-barro não demora em encontrar nova companheira. Sedutor e já contando com um lugar onde abrigar a nova companheira, leva-a para a antiga casa, que, pensa, poderá aproveitar, desfazendo a parede e jogando ao solo os restos da ex. O que não contava era com a presença, saltitante e cheia de vida, da antiga joaninha.

Uma violenta discussão de trinados irados acontece entre o algoz e sua vítima, a antiga companheira. A nova amante, ao saber do que o joão-de-barro havia feito com a anterior, se indigna e toma partido dela. Na discussão dos três, as fêmeas atacam o macho, que desmaia. As duas o colocam na antiga câmara mortuária e fecham, tal qual ele havia feito. Entretanto, não tendo a crueldade do macho, deixam uma fresta para que ele possa escapar. Voam juntas na direção da mata, companheiras e amigas para sempre.

Quando o passarinho volta a si, descobre que fora vítima de sua própria crueldade. Está emparedado e zonzo, como se tivesse tomado um barril de amontilado. Começa desvairadamente a bicar o barro duro, tentando aumentar a fresta deixada pelas duas aves. No seu desespero, ataca a parede com tamanha violência que quebra o bico. Sem condições de aumentar o vão, exausto, tomba e desfalece ao entardecer. Jamais irá ver um novo alvorecer.

ANTONIO GOBBO –

Belo Horizonte, 28 de agosto de 2006

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 07/03/2017
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