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Imagem: minha


Um Velho Casal

 
Enquanto ela ainda dormia, ele saiu de casa e foi até o armazém local para buscar pão e leite. Manhã de sábado, a rua cheia. Era um daqueles dias luminosos, nos quais todos que andam pela calçada estão imersos em uma luz azul-rosada, acentuada pela fina poeira erguida pelo vento, que perpassa a todos como se fossem almas sem corpos.

O burburinho das calçadas, o pregão dos vendedores de rua, as buzinas dos carros, jovens que passavam por ele de cabeças baixas, fones enfiados nos ouvidos sem se darem conta de que a vida estava passando, e que logo todos eles seriam como ele: tudo exultava em vida. Até mesmo as flores secas em uma lata de lixo pareciam dizer-lhe alguma coisa, e eram bem diretas.

Ele chegou em casa, colocando as compras sobre a mesa da cozinha. Ela ainda dormia. Ele começou a preparar o café, e colocou as xícaras e talheres sobre a mesa. Pensava em tudo que contaria a ela sobre o que vira na rua: os jovens com seus celulares, imersos em realidades irreais; as notícias que lera sobre política nas manchetes dos jornais, mas sem compra-los. A gravidez da moça da mercearia, que de tão redonda, com certeza teria uma menina.

Imaginava com que tom dramático diria a ela que o ‘seu’ Pedro da padaria estava em uma cadeira de rodas. Ele, que sempre fora tão ativo, tão cheio de vida. Tentou imaginar o olhar combalido dela, quando soubesse da notícia. Com certeza, ela diria: “Coitado... bem, mas não é esse o caminho de todos nós?”

Enquanto a cafeteira cumpria sua obrigação, dando cusparadas de água quente sobre o pó, ele abriu a porta dos fundos e sentou-se sobre o muro baixo da área de serviço, prendendo os olhos na enorme montanha à sua frente. Finalmente, tinha tempo suficiente para contemplá-la. Seus olhos subiam nas encostas escarpadas, brincavam de deslizar sobre a pedra lisa, espantar os pássaros das árvores que ficavam o sopé da montanha, agitar as copas como se fossem o vento. E o verde de suas pupilas misturavam-se ao verde que contemplava, servindo-lhe de espelho. Pensou que quando ela acordasse, poderia convidá-la para sentar-se ali com ele e olhar a montanha, agora rodeada por uma fina camada de neblina branca e dispersa, como se fosse um bolo confeitado de brisa.

O café ficou pronto, e o relógio marcava oito horas. Ele precisava dizer a ela que Dona Margarida mandara-lhe suas lembranças. Entrou, fechando a porta que dava para a área de serviço.

Abriu a porta do quarto devagar, para não assustá-la, e sentou-se na cama ao lado dela. Beijou-lhe a testa, sentindo-a mais fria do que o normal. Pegou na mão dela, e achou-a demasiadamente rígida. Chamou seu nome baixinho, sem obter qualquer resposta. Apurou os ouvidos, inclinando o rosto em sua direção a fim de ouvir-lhe a respiração. Silêncio apenas.

Ele puxou o ar com toda a força, e baixando os olhos, começou a contar a ela sobre tudo o que tinha visto naquela manhã.

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Do meu blog "Histórias."




 
Ana Bailune
Enviado por Ana Bailune em 02/11/2016
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