repartição
havia aquela porta sempre rodeada de instruções preventivas ou ordens ornamentando as aberturas. uma tradição dos mais velhos era dizer que ali moravam os mortos, os mortos de cada um e portanto de todos, tradição sem tradição porque os mais velhos também eram jovens, "nunca abra esta, está claro?, nunca!", e as pessoas se reuniam na velha casa com estas palavras vagando pelos corredores. o acesso à repartição era através de outra, uma parede falsa, vista de fora, e ele gostava de chegar perto misturando-se ao silêncio do assoalho para ouvir os ruídos que ganhavam vida no interior e depois sentir a vontade de sair correndo e gritar algum desespero apertando a faringe que parecia o seguir assustado. aquele dia todos se distraíam no quintal entre as fumaças da confraternização quando ele foi surpreendido sozinho pelo desejo intolerante de se aproximar assim que ninguém mais imaginasse que ele o faria e os estalos da madeira, ouviu, começaram a causar a inquietude no interior, sempre causavam, e se acercou mais e a vontade de sair correndo travou uma batalha no peito com o coração que o empurrava para a maçaneta, bronze-envelhecido irresistível ao seu alcance, estava gelada e a palma da mão também se gelou, os frisos das extremidades passando nas digitais, e o metal declinou como que por impulso próprio na leveza dos dedos infantis. dois pares de olhos com a mesma idade ficaram frente-a-frente, e de dentro o que surgia era o som da matéria escura, daquilo que os olhos procuram na espessura da neblina, a sensação perturbadora que deixa-se ser escolhida em existência ou formato por quem a sente ou pensa que sente e escolhe conforme os fantasmas que lhe são mais íntimos, e o subconsciente o trai fazendo crer que ali há algo, o quarto com a porta trancada desde sempre surge do fundo ao meio da sala como os tempos rangendo a porteira duma fazenda isolada, a opressão da sensibilidade noturna rodeando com baixos graus célsius o instinto da visão delirante, o vulto imaginado ganhando um foco numa voz que liquidifica-se forte e cilía com segurança os contornos inconstantes e tomba as toneladas pesadas do medo sobre a respiração ofegante que fresta "te disse que não era pra abrir! te disse que não era pra abri!" e até o teto da velha casa parecia ir abaixo sob os estrépitos das dezenas de passos incrédulos e sem direção que invadiram o chão vacilante do recinto.