O gato dormiu sozinho
 
     Bairro de classe média, um prédio que não se destacava demasiado de outros análogos, salvo talvez na ousadia estética infeliz cometida por algum arquiteto ávido por se sobressair no kitsch que conseguiu imprimir nos desenhos das sacadas, se tocássemos o interfone agora ouviríamos a voz sonolenta do seu Matheus dando seu “bom dia, pois não?” meio contrariado pela hora avançada, o que teríamos de lhe perdoar, pois se ele se dispusesse a chamar o apartamento 84, o que se seguiria seria um não-entender-nada abrupto, com o velho casal violentamente arrancado de seus sonhos incongruentes ou de sua insônia preguiçosa e autocomplacente, a insistência do toque acabaria levando o menos mau humorado, hoje a Marlene, odiava que a chamassem senhora, a ir checar o quarto do filho, o único com alguma chance dentro da realidade verificável, a possivelmente estar esperando alguém àquelas horas, o que levaria a boa senhora a ter de lidar apreensiva com o fato de que o Marinho não tinha voltado ainda, e aí sim o som do interfone passaria a se traduzir nos mais negros prognósticos. Por isso deixemos de pretender importunar assim a vida dos outros, que ainda terão umas horas de sossego, no máximo daremos uma ou duas acariciadas na cabeça do Jack Sparrow, o gato gordo que dormia no travesseiro do ausente, que dará um miado meio contrariado e ficará a contemplar as luzinhas do computador que tinha ficado ligado a baixar duas temporadas de algum seriado descoberto recentemente, o relógio de ponteiros vintage e barulhento apontaria as cinco e vinte e alguma coisa da manhã.
        Precisamente 5:23 hs, como poderíamos checar no telefone portátil do Mario, se tivéssemos a pachorra de pedir ao mendigo, que o sacava do bolso do antigo dono às pressas, que o emprestasse dois segundos, o que não faremos,  Pinguim não tinha tempo para essas curiosidades, ainda pretendia procurar a carteira e tirar a jaqueta e os tênis, ainda que a rua fosse deserta e o playboyzinho estivesse todo quebrado e ensanguentado não era bom arriscar, os quatro que o tinham arrebentado a socos e chutes, em meio a gritos de viado e filho da puta poderiam voltar e sei lá, o mais certo era que pudesse aparecer o Nei ou o Mudo e aí teria de dividir tudo ou saírem também eles na porrada.
Dener Pastore
Enviado por Dener Pastore em 23/10/2015
Código do texto: T5424588
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.