Dia útil

Enquanto fecha o portão do prédio pensa que não ia fazer tanta diferença, uma vez já atrasado, sentar um pouco no degrau da casa da esquina e dividir o resto do pão com queijo com o cachorrinho branco e amarelo, alegre coincidência, arranjo social que dura até que um menino esbarra a mochila na pressa e cachorro dispara pra rua e pedaço de queijo pra um canto da calçada, onde é logo alcançado por umas formigas de antenas bem longas, detalhe que merece uma foto e uma pesquisa no celular, até que se contenta com a informação de que se tratava de Paratrechina longicornis, e ao ler que era possível seguir as operárias facilmente até o ninho segue-se uns quarenta e tantos metros de calçada, mães desconfiadas e crianças uniformizadas rindo e apontando o homem de paletó, gravada e pasta executiva encurvado e se esgueirando por vãos de postes, sacos de lixo, mendigos dormindo, caixas de papelão, até que esbarra no dilema momentâneo de voltar pro caminho do metrô ou seguir a trilha por cima do muro protegido por cacos de vidro ou do portão enferrujado, que faz um barulho inacreditável e antes que consiga cruzar a primeira perna por cima das lanças a janela da frente se abre e um velho se põe a gritar esganiçadamente, atividade que não diminui muito com as explicações de bola do filho, desculpe a hora e não tocar a campainha mas. No vagão do metrô, onde brotava de algum lugar uma música onde uma moça insistia estar ficando atoladinha, uma senhora com o que parecia ser sua neta lhe tira a atenção da revista do tio Patinhas, a menina segurava um ursinho de pelúcia com a cara mais triste imaginável, o nariz de plástico pendendo, descosturado, levanta-se e fica ao lado delas, mas como o vagão tinha muita gente em pé e tinha de ser bem discreto demora quatro estações para conseguir arrancá-lo e pôr no bolso, sensação de euforia contida que é estragada pela constatação de que sua própria estação tinha já ficado pra trás havia tempo, mal estar que compensa comprando um panetone numa loja da próxima interligação, mas agora a plataforma estava bem cheia e como não consegue entrar em dois trens seguidos, resolve tomar um ar lá fora, onde acha um lugar ideal para sentar e desvendar o panetone com o canivete suíço, no que é rapidamente abordado por um mendigo que passava e também parecia ser grande fã de panetones, garrafas vazias e histórias lamurientas, mas que insistiu muito para que fosse conhecer seu amigo duas ruas pra cima, que tinha pra vender uma maconha da boa, Mas é que estou atrasado e eu nem fumo, e como depois se viu de fato o negócio era tão forte que quando se deu conta estava sentado no banco de uma praça com uma bola enorme vermelha de plástico nas mãos, sem a pasta e com o sol já a pino, uma fome formidável que o leva a uma pastelaria de uns chineses muito simpáticos, desconfiados no início mas depois de pouco tempo já lhe ensinando umas palavrinhas e falando de sua sobrinha que ia chegar logo mais, espera que aproveita para oferecer a bola vermelha a um menino de rua que o chama de tio e lhe recomenda o sexo anal passivo, tristeza da bola rolando rua abaixo, ainda deu pra ouvir o arrastamento de pneus de um carro e um motoqueiro gritando incisivo  o mesmo conselho do menino de rua. Prometendo que voltaria mais tarde vai procurar cigarros e é surpreendido por uma chuva furiosa, que o convida a tirar os sapatos e as meias e comprar uma garrafa de vinho numa loja de conveniência, ao fim da qual ele se encontra por acaso no quarteirão onde morava uma amiga e sem a lembrança de onde tinha deixado os sapatos, o que foi compensado pela sorte da amiga estar em casa a essa hora e ter cerveja, camisinhas e cigarros, amanhã resolveria isso da entrevista de emprego.
Dener Pastore
Enviado por Dener Pastore em 23/10/2015
Reeditado em 24/10/2015
Código do texto: T5424554
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