Não sabia bem como funcionava isso, mas às vezes acontecia de, enquanto escovava os dentes, no meio da caneca de Nescau ou agachado ao lado da cama nos esforços de alcançar algum par de tênis, perceber que tudo fazia sentido de alguma maneira, que a existência mesma era algo incrivelmente pleno de significados e potenciais, que mesmo as pessoas não eram tão ruins, ainda que perdidas em suas armações internas rígidas, cegas e vacilantes era bom estar perto delas, partilhar a grande sorte de estar aqui, contemplando o infinito da realidade estendida no tempo, a complexidade vertiginosa das leis e estruturas que orquestravam a grande música do simples ser e sentir, em cada compasso de respiração, dor, felicidade ou medo. Nesses raros momentos sabia que podia preparar-se alegremente para a extasiante flutuação de consciência que o passar das horas e a interação com o mundo externo lhe proporcionariam naquele dia, ainda que o Terminal Lapa já estivesse atrasado vinte minutos e a chuva fina começasse a empapar-lhe o cabelo e a camiseta do Woody Allen.

           Nesses dias as manifestações dos companheiros de trabalho, normalmente percebidas como vulgaridades, falta de imaginação, repetições de mau gosto, fraqueza e vazio, tomavam outras cores, deixando entrever uma poesia velada e uma vida pulsante em detalhes como uma postura, uma entonação, um olhar, como se agora tivesse condições de acesso à imagem do pássaro e não mais da gaiola, pouco faltava para querer abraçá-los e festejar o grande momento que era o simples agora. Não raro a plenitude e a magia que exalava nesses feriados da alma acabavam por deixar as pessoas confusas ou desconfiadas, mas também levemente alteradas pelo estranho e embriagador perfume espiritual borrifado sabe-se lá por que ninfa na cabeça molhada do analista júnior, que provavelmente devia usar maconha ou até algo pior, o Carvalho ou o Aristides deviam tomar alguma providência com esse moço.