Viagem ao Inferno
 
A coisa emerge na madrugada. Em sono atribulado de dores e  pesadelos, ela sente a dormência na mão: um salto, sobressalto! Pés escorregando para o piso gelado, dos frios de maio. O peito explode na corrida até o banheiro. Cambaleia. Pernas trêmulas, na sensação que apavora: cadê o chão?
 
No espelho, a imagem vazia. A pele de cera, lábios brancos, olhos mortos em auréolas escurecidas. Vertigens! O estômago pelo avesso, suor minando dos poros, o pijama grudado no corpo magro. Dedos crispados no mármore da pia... O ar? Cadê o ar? As mãos arranham o pescoço, em luta desleal com a asfixia. Feito cavalo alucinado, o sangue galopa, queimando nas veias...  O coração  arrebenta em batida ritmada, quase palpável, de tambor... Bum... Bum... Bum!
 
 Maurício! O grito ecoa pra dentro, sem voz... Maurício está no Pantanal. O corpo sacudido em espasmos, como que possuído por entidades zombeteiras. Ânsia de vômito. Oscilante, curva-se feito bambu em noite de vento e se esvai no líquido amargo e viscoso que lhe escapa em golfos pela garganta. Lata d’água na cabeça, rodilha de pano sob o feixe de lenha. Capim cheiroso rasgado para encher os colchões. Rasgos insanos de vagas lembranças... Nada que combine com o glamour atual. Só a cabeça oca, em desvario, querendo se agarrar a qualquer coisa...
 
Labaredas! A mente ferve! Pinça gigante de aço a comprimir-lhe os ossos do crânio. Água borbulhando na panela de ferro do fogão à lenha, à espera do frango de domingo, sangrado no terreiro, pronto para o depeno. Por que isso agora? Mente quando destrambelha  é máquina do diabo. Disparo de cavalo doido a despencar abismo abaixo... De onde, a absurda chusma de sandices a lhe turvar a lucidez?
 
Ar! Ar! Ar! Lá fora a noite brame em ventos. Fora desse espelho, morte não é! A morte não seria assim tão agonizante. Isabel! Um dia, Isabel lhe disse que plantas acalmam. Companheiras fiéis no martírio dos mal-dormidos. Correr em círculos infinitos em volta dos canteiros, até a exaustão total? Cair exangue, sem forças para acordar? Talvez. Qualquer coisa! Qualquer coisa, que dê fim  a essa coisa! Girândola ensandecida, a  ponta dos dedos na ponta das  folhas, repete sem cessar:
 
—Vaipassar-respirafundo-vaipassar-respirafundo-vaipassar-respira-fundo-vaipassar-respirafundo... fundo... fundo.
 
Respirar dói! E fundo é pior! Cada célula viva, acuada, encantoada... Não passa. Não respira... A janela, no segundo andar. Uma lua sangrenta bóia, colando pedaços de nuvens pretas. Pensamentos moídos, corridos, lampejos, presságios... Ideias! Ideias enlouquecidas, desencontradas, jorrando aos borbotões. Calcula a esmo a altura, do parapeito até o chão. O  baque do corpo... Só um baque... E só! Lá embaixo, o pé de hibiscos amarelos. O som acariciante dos galhos se partindo... A ideia alucinada a  atrai loucamente. Falta coragem.
 
Isabel! Atende o telefone, pelo amor de Deus! Três da manhã. Isabel dorme, mas o tilintar insistente a arrasta para a cena do terror:

— Alô!

— Não posso mais! Nem mais um segundo! A coisa! A coisa! A coisa!

As mãos empapadas de suor, escorregadias de terror. Dos dedos brancos, gelados, escapa o fone... Pendurado num sugestivo fio. Se Isabel não chegar, não haverá tempo, nem lugar para a covardia...
 
A chave de Isabel gira na porta. O corpo  tirado do nada desaba no banco do carro. Do outro lado do rio, Dr. Alfredo aguarda. Emerge calado do colchão, a um canto da sala. É ali que sempre finge dormir, à espera dos remanescentes das entranhas das loucuras:

— A pílula, pôs? Pôs debaixo da língua? Ainda não?

A pílula... Em pouco, o cavalo sucumbirá ao próprio galope. Nos braços de Isabel, ela dorme...