Perdi-me

Tava tudo bem calmo. A rua escorria lágrimas de chuva, os gatos mijavam seus pelos úmidos pelos bueiros e eu caminhava pelas poças, pisando duro nelas, pra ver se alguma resistia e me sustentava sobre as águas, igual ao famoso hippie J. Christ.

As minhas lembranças iguais moscas que flutuam em contato com a réstia de memória que eu levo pelas calçadas de pedra. Depois que eu deixei a casa de repouso, levo minhas memórias retidas fracamente pelos anos em constante companhia com as agruras da fome e do pesar.

Um homem pode viver sua vida inteira fazendo o que se espera dele, mas andar descalço pelas poças de água desafia as leis do normativo ferrado dessa sociedade. As lágrimas de chuva tombavam meu couro cabeludo, levavam a sujeira acumulada pelo bueiro entupido.

Foram 50 anos servindo esposa e catando a merda das crianças, das crianças das crianças… Uma vida alheia ao sentido pérfido de estar presente em suas vidas medíocres, tornando-as ainda pior, malhando nas doses de cotidiano seus pudores, meus conselhos jogados ao vento.

Do alto da minha avançada idade, estou chutando pedrinhas, apodrecendo os ossos com o lamento da chuva, os guarda-chuvas arrebentados pelo caminho. Não sabem eles que o desfrutar das gotas sobre o corpo lava a alma dos pobres rebentos sem pai?

Caia chuva sobre meu corpo e que me leve ao túmulo, que seja efêmera minha felicidade, que eles não me levem de volta às quatro paredes brancas, que eles não me amordacem mais, que eles não me toquem mais, que não me enfiem remedinhos goela abaixo, que me deixem em paz, uma única vez, a última vez.