CALÇADAS
Só vi quando aquela lágrima caiu. Ela virou o rosto tentando não demonstrar sua fraqueza. Mas era menina forte, ali naquela calçada, sentada, observando tudo e todos. Adornada estava em seu surrado vestido azul, tão velho, que fora da irmã que se mudou faz tempo.
Maria Clara contempla as pessoas passando por ela e ela ali vendo passar o tempo. Conhece alguns, mas ninguém a conhece. Sabem que ela mora na Vila de Águas Claras, que não existem por lá. Dizem, no passado havia uma lagoa que agora foi aterrada e construíram casas no lugar.
Clarinha fica por ali somente durante as tardes, mas agora as férias escolares a levam a ficar também de manhã. Não tem brinquedos em casa e não tem comida. Às vezes até tem, mas fica para o irmão menorzinho, e o padrasto não gosta de vê-la por perto. Ela fica ali e espera que seu Manoel lhe dê algo. Nem todo dia ele se dá conta de que ela está naquele lugar apenas a esperar um pouco de comida. Tem nove anos apenas, e uma centena de passos percorridos, ora para estudar, ora para o lixão. Sua vida corre em infindáveis dias de luta, travada como em um campo de batalha medieval, onde quem vence é aquele que mata, quem triunfa, o faz sobre o sangue alheio. Clara sobrevive todos os dias, ao sol e às chuvas e não fala de amores. Eles não tem espaço no seu mundo.
E assim vamos seguindo a vida, num curso lento e rápido, variando sempre de acordo com os ventos e tempestades, calmarias e nevoeiros silentes. Dias de Clara, outros de Manoel. Dias frutuosos ou não. Esperando um dia que a morte nos apanhe num guerreiro com espadas implacáveis, que atingem direto, mortal, nosso coração.