Resgate

Disse adeus ao esposo, disposta a recomeçar sozinha. Sonhos, projetos atirados à lata de lixo, junto aos papéis e fotos que acabara de rasgar. Já na estrada, o ponteiro do velocímetro subia depressa enquanto o carro deslizava no asfalto molhado. O rádio estava desligado nesse momento, pois queria ouvir apenas o barulho dos pingos de chuva.

Começava a anoitecer. O coração angustiava-se à medida que se afastava. As luzes começavam a iluminar a cidade e se refletiam no chão molhado. Bate uma nostalgia que não impede que as lágrimas caíssem ofuscando-lhe a visão. Podia estar quentinha em casa tomando um vinho em frente à lareira, falando de sentimentos como se eles nunca precisassem ser omitidos. Mas por que não eram ditos? Por que fugir? E de quê?

Lembranças, fatos, lágrimas e agora o rádio era ligado num volume alto. Assim, aproveitando-se do barulho da música, da chuva e de sua mente atordoada, ela gritava sua dor, como uma louca no meio do trânsito, sem ouvir a buzina, sem sentir a batida, pois seus sentidos se perdem.

Jogada para fora da estrada percebe-se à beira de um rio, mas a chuva era intensa e a água não parava de subir. Levanta-se para puxar a filha que lhe chamava já quase sucumbindo às águas. Consegue trazê-la para si levando-a para a terra seca, onde rapidamente inicia uma respiração boca a boca alternada com massagem no peito: _Volta, filha. Volta , gritava desesperada, você tem que voltar.

Já quase perdia a esperança quando a filha cospe a água abrindo os olhos cansados. Puxando a criança para si ela ri, extasiada de felicidade. Tinha conseguido, mal podia caber si de alegria, tinha conseguido. Ela estava viva.

De repente, o choque: lembrava-se de que não tinha filhos, nunca tinha tentado engravidar. O casamento acabara sem frutos, sem descendentes. Quem estava em seus braços? Perguntava-se atordoada, mas a resposta estava dentro dela, era ela, a mãe, a filha, a essência de si mesma, em si mesma, dependendo apenas de um sopro, um desejo intenso de sobreviver. E é assim que sobrevive, não apenas um despertar de um transe temporário, mas o despertar do transe em que estivera mergulhada durante anos de sua vida, fugindo de si mesma, de ser mulher.

Os olhos se abrem com dificuldade, ainda nem percebera que estava em um leito de hospital. O esposo lhe sorria. Uma chance a mais. Uma, duas, quantas fossem preciso até encontrar a essência daquele encontro com o outro da mesma forma que encontrara a essência do encontro com si mesma. Ela sorri: _Começamos de novo?

_Nós três agora – ele responde mostrando-lhe a ecografia no vídeo ao lado da cama.