Canceroso do Espírito

Desmónde acendeu um cigarro e ficou olhando para a televisão, tentando esquecer que a noite de domingo era uma noite de domingo. Era um programa de auditório. O apresentador, velho como o diabo, perguntava a mulher, loura, olhos claros, se ela fazia faculdade, sim, ela fazia. Desmónde não fazia faculdade, tinha um ódio particular contra universitários. Apenas trabalhava. O trabalho de Desmónde não era fácil, ficava longe, na Área Industrial, uma madeireira. Os companheiros eram engraçados, mas a caldeira exalava uma fumaça nauseante, a pá de carvão era pesadíssima e alguém estava sempre gritando com ele- principalmente quando não era necessário. Voltava extenuado para casa. Como estudaria? Arrumaria um emprego melhor?

Mudou de canal: um velho tocava piano. Ocorreu a Desmónde que jamais aprenderia a tocar piano. Os pianistas ganhavam bem? Não havia como saber. Provavelmente ganhavam melhor do que ele. Aliás, não era tarefa difícil achar alguém que não ganhasse. Mudou de canal: corrida. Desmónde não tinha carro, apenas uma bicicleta. Mudou de canal novamente, agora era um humorista. Os camaradas da firma eram mais divertidos. Ficou assistindo televisão, fumando, tossindo, pigarreando e tentando não pensar. Parecia impossível. O humorista fazia piadas sobre sexo, aparentemente, sexo era a palavra que colocava um termo à todas as outras. Os homens não precisavam mais de Deus. Só de sexo, pianistas e corridas.

Intervalos comerciais. Desmónde acendeu mais um cigarro no outro que estava no fim. Lembrou ter lido em algum lugar que o cigarro causava cegueira. Se ele, Desmónde, cego ficasse, fodido estaria. Um cego não pode jogar carvão na caldeira. Na verdade, um cego não pode fazer muitas coisas, além de tocar piano e sair por aí usando óculos de sol e atrapalhando as pessoas na rua. Voltou para o canal do pianista. Aterrorizado, concluiu- e convenhamos, com sagacidade-, que não teria a opção de tocar piano caso perdesse a visão. Talvez todas as pessoas devessem aprender a tocar piano, assim se ficassem cegas, ainda teriam uma chance.

De repente a melodia chamou a atenção de Desmónde, conhecia aquilo, sabe-se lá de onde, não era um erudito, o trabalho não dava espaço. Ficou emocionado, estando só, deixou as lágrimas verterem. Aquilo não tinha sentido. Desmónde era um azarado. Gostaria de ter nascido numa família classe média na América do Norte. Seria perfeito: as ruas pavimentadas, como nos filmes, os gramados das casas um verdadeiro tapete. Se ele tivesse olhos verdes e cabelos castanhos ondulados, caindo nos olhos, seria perfeito. No entanto, ele estava ali, no planalto norte catarinense, o cabelo crespo raspado há um mês já branqueava, feio de dar pena. Ele estava ali, numa casa de três peças, assistindo televisão, fumando e chorando e vendo o velho no piano. Todo mundo amava pianistas. Pianistas e humoristas e gente que faz truque com o baralho. O proletariado que fosse à merda. Desmónde estava farto, doente, fatigado, canceroso do espírito. Não tinha chances nem amigos de verdade nem esposa nem esperança.E nunca seria um pianista.

Levantou da poltrona rasgada, foi até a cozinha, bebeu um copo d'água, depois apagou a televisão, fumou um cigarro e se enforcou.

R A Ribeiro
Enviado por R A Ribeiro em 05/09/2013
Reeditado em 26/01/2015
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