O ESPELHO
Olhou-se no espelho.
Sentia-se diferente naquela manhã, quase não se reconhecia naquele homem refletido.
Deu-se conta que já fazia muito tempo que não se olhava tão detidamente.
Aqueles olhos.
Mal conseguiu encarar-se.
Eram olhos de um homem desconhecido.
Desviou o olhar; aquele homem do espelho parecera-lhe tão estranhamente repulsivo.
Tivera até a impressão que a imagem fizera-lhe um leve aceno, como se tivesse vida própria.
Quem é você? perguntou-se.
Precisava largar aquela mania de ler livros medievais de Cavalaria. Pensou, enquanto examinava as rugas que ganhara do tempo e que só agora dava-se conta.
Lembrou também que lera em algum lugar de um sujeito que fora engolido por um sofá-cama. Nunca mais o encontraram. Sugado por um sofá-cama..., bobagens...
Nem em Alice através do Espelho se via tal absurdo...
Agora sim, tinha certeza. Seu reflexo havia dado um leve sorriso!
Mas tinha certeza que não sorrira àquele estranho em momento algum!!
Devo estar estressado...
Olhou-se novamente e teve pena de si mesmo.
Não tenho com que me estressar - pensava - tenho tudo, vi e vivi quase tudo...
Começou a relembrar o passado, até a idade de 6 anos.
Ele e aquela menininha sardentinha, nem seu nome se lembrava mais.
Meu Deus! quanto tempo se passou!
Lembrou-se da notícia de sua morte, uma semana depois daquela bricadeirinha do passa-anel.
Nem chegara a saber do quê; só que morrera a coitadinha...
Sabia o que era morrer, só que acreditava que somente os mais velhos morriam.
Sentiu retornar a mesma tristeza e angústia de menino.
Um lampejo de suicídio veio-lhe à mente.
Afastou-o, era muito covarde para enfrentar sozinho a solidão da morte.
Uma idéia foi tomando corpo em sua mente.
Meu Deus! agora compreendia...
Balbuciou o início do poema Tabacaria, de Fernando Pessoa,
deu um passo à frente
e desapareceu no espelho.