Vida pássara
É claro que fiquei bastante impressionado quando soube dos pás-saros com câncer, mas fiquei ainda mais ao saber da clínica que lhes construiriam. E, tão logo li a matéria no jornal, lembrei-me de Biano. Veio-me a cabeça a insana idéia de que se já houvesse dessas casas de tratamento para aves, ele estaria salvo. Mas não fora assim, e isto muito me dói ainda, mesmo passados todos esses anos. Era um garoto como outro qualquer, exceto pelo assobio que controlava com a maestria meló-dica dos pássaros. Aparentemente não imitava nenhum deles, tampouco solfejava canções populares ou eruditas, mas tinha um canto peculiar riquíssimo em variações. Dificilmente brincávamos juntos, mas estava sempre por perto, sentado nas calçadas ou sob as árvores, assobiando; e não raras vezes pararíamos para ouvi-lo, não fosse pela sua instância para que não o fizéssemos. Meninos distantes chamavam-no com maledi-cência de Curió. Em casa dos primos evitávamos isso, embora ele pare-cesse não se incomodar. A verdade é que estava sempre distante. “Vive nas nuvens.” Dizia seu pai com certa arrogância. De compleição raquíti-ca, delgado, e a sua aparência de invertebrado, não podia ajudar o pai no armazém; também não ia além da mediocridade nos estudos. “Nunca dará para nada essa cria inútil”. “É frágil como um passarinho, deixe-o em paz”, dizia sua mãe. “Está mais para lesma”, respondia, “e a culpa é sua.”
Então o verão trouxe as andorinhas.
Centenas de milhares a se apossarem de todos os lugares: ocos de árvores, cumeeiras de casas, postes, copas e barrancos. A cidade fer-via tomada pelos pássaros. No primeiro dia apareceram como uma gran-de sombra que alarmou todas as crianças, exceto os adultos conhecedo-res e habituados ao fenômeno. Para Biano, fora uma revelação. Na pri-meira noite, quase não dormira e tantas perguntas fizera que seu pai acabou por dizer que aqueles não eram simples pássaros, mas caçadoras que lestas pegavam em pleno vôo os insetos. Eram úteis. Não eram como ele, Biano, um inútil. Enfim dormira sem que estranhassem o seu silên-cio. Com a manhã, tornou a revolução dos pássaros e dos meninos, mas então ninguém mais encontrou Biano. Apesar da desesperada procura, a princípio como se fosse uma caçoada de sua parte e depois com visível preocupação de seu pai, só fora encontrado dias depois quando as aves já escasseavam e uma a uma sumiram no infinito.
Trepado na copa de uma árvore, pálido e muito trêmulo, mas en-tão não era mais o mesmo. Além do aspecto melancólico já tão comum a todos, ninguém mais o vira assobiar, e talvez nem estranhassem não fosse o fato de que também mal comia e muito menos dormia. Enfraque-cia a olhos vistos. Consultados todos os médicos, ninguém definira ao certo o mal que o acometia. Eram tristezas: mudar de ares, passeios pelo campo, chás de tília e até mesmo sedativos foram ministrados. Certo dia ocorreu-me presenteá-lo com um pífaro como se a insuflar-lhe o antigo hábito. Tudo se fizera inútil. Morrera à noite sem um só ruído, talvez sem dor – e a voz popular não se conteve em dizer que morrera como um passarinho.
As andorinhas trouxeram o inverno.