Anos de esquecimento
Embora certo e esperado, não pude conter o pasmo quando dei com a minha ausência no espelho do banheiro. Aguardava aquela ocasião havia vários anos, e diversas vezes ensaiei a indiferença que deveria ma-nifestar quando se consumasse o fato. Agora acontecera. E quase perco o controle emocional há muito enrijecido pelos ensaios contínuos. Contive-me e cumpri o rito habitual a todas as manhãs: fiz a barba e tomei o ba-nho quente de sempre como se ainda existisse (pelo menos a mísera e-xistência como a concebem os mortais). Naquela manhã de inverno, de-veria chegar mais tarde ao escritório, pois já entregara o projeto da cam-panha e poderia então sair pela rua a sentir se haveria alguma reação diferente nas pessoas. Sei que o processo era gradativo, e o fato de não ver-me ao espelho não significaria que já me não veriam; levaria algum tempo – o necessário para preparar-me com o mesmo rigor com que le-vara os passados sete anos.
Na lanchonete da esquina, tomei um café expresso e fui cumpri-mentado normalmente pelo rapaz de avental vermelho. Falou-me algo sobre a derrota do Santos, sorri displicente tentando compactuar com a sua efusão, deixei alguns centavos no balcão, e saí. A distância, virei-me e vi que me olhava aparentemente trêmulo e assustado. Sabia da intui-ção das pessoas, mas sempre subestimara pessoas de condição intelec-tual inferior a minha, preconceito que a eternidade transformaria em pó. De qualquer forma, não quis acreditar que aquele adolescente de cara rapada e espinhenta, incapaz de uma afirmativa ou pergunta perspicazes, redundante no seu repertório sobre futebol – a quem fora forçado decla-rar-me torcedor do Santos, devido a sua insistência e incredulidade ante alguém sem um time de preferência – fosse capaz de traspassar-me além da aparência, como me fizera o espelho. Mas assim fora. Fora o primeiro e, durante nove meses subsequentes, o único a não me ver.
Estranha condição a de não conseguir-se ver ao espelho. Primeiro porque não se trata de cegueira, pois vê-se perfeitamente bem as demais pessoas e o ambiente entorno. Depois porque a única maneira de nos vermos integralmente é pelo espelho, sem ele nosso rosto não tem for-ma, e não nos conhecemos por inteiro. Enfim, quem não se vê não é vis-to. E, desde que me aconteceu o inevitável, muitas vezes me senti como o mutilado que se coça e sente dor na perna que não mais possui. Tudo se dera como se em uma praia deserta eu caminhasse para trás, e cada passo regresso apagasse as pegadas que outrora fizera na areia.
O mais doloroso foi ver-me a imagem apagando-se da memória das pessoas próximas como uma fotografia antiga. Quando meu próprio irmão em uma tarde de verão olhou-me e cumprimentou-me como se não me conhecesse, fui tomado de um sobressalto imenso – depois já pouco me importou quando também deixou de ver-me. Ao fim de trinta e seis anos, já não mais existia – vagava pela cidade ansioso por ser visto ou reconhecido por alguém, inutilmente. Ainda hoje me pergunto o que me leva a continuar os mesmos hábitos de quando existia – a mesma gravata vermelha sob o paletó marinho, os sapatos pretos impecavel-mente engraxados e o perfume francês presenteado por Lia e desde en-tão jamais substituído.
Quando se perde a própria imagem, não se é capaz de viver as semelhanças: nada me lembrava nada! Pelo menos até esta manhã, quando a jovem que saía do cabeleireiro sorriu-me e cumprimentou-me como se me visse. Não fosse pelo tempo passado e pelo rosto jovem sem os vincos da idade, juraria ser a própria Lia. Estranhamente não me as-sustei, como seria coerente depois do longo tempo de esquecimento, mas retribuí ao cumprimento, perguntando-me que espécie de pessoa poderia vislumbrar-me na sombra da inexistência.
Era a ressurreição em pleno outono.