O MILAGRE DA COUVE MINEIRA

Passava das duas da madrugada e Zé das Couves ainda não pregara os olhos. Virava e revirava na rede que lhe servia de cama. O motivo da insônia, não era com certeza o leito, pois há anos se habituara a dormir, descansar, fazer as refeições, meditar, e até fazer os filhos na rede. Bem trançada e reforçada, acomodava bem o casal e até os filhos pequenos. Não, o assunto que desandava o pensar de Zé das Couves era bem outro.

Naquela manhã, agarrara a pensar no desrespeito que lhe tinham em toda cidade.

Vilarejo do interior de Minas onde todos são parentes, compadres, amigos ou inimigos, enfim, todos se conhecem.

- Onde já se viu! Na minha idade tanta falta de consideração, falta de respeito mesmo. Isso não fica assim...Ora... Esses porqueiras... Hão de ver!

Tanta indignação tinha uma causa. Zé das Couves que na pia batismal recebera o pomposo nome de José Emanuel Floriano da Costa e Silva, herdara a alcunha de Zé das Couves, pois seu pai havia sustentado toda a família, plantando e vendendo a tão apreciada hortaliça.

Vivera bem, sem nunca ter se importado com o apelido, mas de uns tempos para cá, implicava com a maneira com que lhe chamavam.

- José Emanuel... É esse o nome que minha finada mãe escolheu e Deus abençoou na hora de meu batismo. Onde se viu... Zé das Couves... Tenho nome... José Emanuel... José Emanuel!

Tanta implicância era justificável. A idade já ia avançada. Ele sabia que faltava pouco a viver. Não queria passar à eternidade como Zé das Couves, por isso a cisma que o aporrinhava tanto.

E tanto ralhou que os parentes, os conhecidos já não ousavam chamá-lo como antes e se isso acontecia, por puro hábito, o infrator desmanchava-se em desculpas.

Tempo ao tempo, tudo ia se assentando, ninguém mais se importava com o incômodo demonstrado por Zé das Cou... Oh, perdão, pelo Senhor José Emanuel, com o antigo perrengue que por bom tempo enriqueceu o folclore do vilarejo, alimentando as conversas nos botequins e na porta da igreja, o que irritava profundamente o Santo Padre e aguçava sobremaneira a tagarelice do Sacristão.

Manhã de sexta-feira. Dia chuvoso céu carrancudo, vento gelado daqueles típicos da Serra da Mantiqueira que se espalha pelos campos das Gerais. José Emanuel caíra doente, doença de velhice, triste e sem volta. No mesmo dia, finzinho de tarde, o velho senhor partira para sempre, morrera como um passarinho, diziam alguns, outros achavam que tinha ido tarde. Poucos prantearam seu corpo, mas os que o fizeram foram sinceros no pranto e na tristeza.

Por volta de três da tarde de sábado, o defunto já baixara a terra e só Seu Geraldo, coveiro antigo, ajeitava a sepultura com esmerado respeito.

A vida corria morosa e dolente como só é possível no interior da Canastra, entre o murmúrio do rio que beirava o vilarejo e o latir do vira-lata perseguindo o leiteiro que, de bicicleta, atendia a parca freguesia.

A monotonia foi subitamente interrompida. Geraldo, o coveiro, em desabalada carreira, branco como os lençóis das lavadeiras, que quaravam ao sol, entrou pela porta da sacristia chamando pelo Senhor Vigário.

- Deus seja louvado! Venha Seu Padre, no cemitério, corra, venha ver, traga o terço que o caso é sério.

O vigário sem muito entender buscava acalmar o espavorido coveiro acompanhando-o rumo ao campo santo, atrás vinha um séqüito que superava em muito o cortejo que dias antes levara José Emanuel à última morada.

De fronte à sepultura ainda fresca, todos ficaram boquiabertos.

Sobre a tumba vicejava forte e esplendoroso qual guardião impoluto, um magnífico pé de couve. De suas folhas verde esmeralda, as gotas de orvalho rolavam como lágrimas prateadas chorando o amigo que partira.

Claudio De Almeida
Enviado por Claudio De Almeida em 07/03/2007
Reeditado em 23/06/2007
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