Metamorfose

Tarde de outubro. Horário de verão. Hemisfério sul. Sobre a máquina de escrever a massa de cabelo escuro repousava em cólicas sem que o toque dos dedos, ora leve ora feroz, encontrasse palavra a que desse vida.

Bem sabia que a angústia a consumia sem sucesso: À quem comunicar as dúvidas que a feriam? Era paga para ter certezas. Sim. Não. De jeito nenhum. Desde que, é claro, suas certezas referendassem o que estava escrito, há séculos, pelo medo.

Muito jovem acreditara ter o mundo nas mãos. Nem tanto. Bastava-lhe saber que estava ali e um dia, seria seu. Tinha a vida inteira pela frente. Anos depois, no limiar de uma nova vida – a que começa aos quarenta – aninhava no coração tantas perguntas, que achava ter feito o caminho inverso: nascera velha – da velhice que enferruja, que range, que cega. Mulher de esperar quinze anos por um homem que nunca foi seu deixou-se aprisionar pelas certezas, pelos “sem dúvida”, pelos “de jeito nenhum”. Não era firme, era dura. Nem o filho posto ao peito abalou o que pensava saber. Chorou sobre ele lágrimas quentes e carregou com dor o que devia ser felicidade. Fez o que era certo. E um dia descobriu que em vão abrira demasiadamente os braços para tudo conter; inutilmente arregalara os olhos para tudo ver e que por mais que houvesse tentado, não havia um sempre, não havia um tudo, não podia viver sem morrer um pouco a cada dia.

E como não houvera no parto original, rompeu-se em águas, abriu-se em dores e ainda verde menina, e ainda velha, foi tendo sua figura alterada como nos efeitos especiais de cinema ou de clipe musical.

Desistiu da dor. Nem tanto. Pelo menos da que não era necessária. Considerou a idéia de que sofrer nem sempre é preciso. Aceitou viver e ver no que ia dar.

Readolescendo encontrou um novo amor. Buscou na perplexidade do filho adolescente os olhos que não viram o mundo. Gastou horas frente ao espelho, namorando-se e chamando-se gostosa.Ponderou que os outros teriam coisas a lhe dizer. Suavizou as rugas adquiridas no desencanto. Ficou mais doce. Achou que ainda tinha tempo: a vida inteira pela frente, quanto tempo isso leve.

E na tarde de outubro, horário de verão no hemisfério sul, acolheu as dúvidas, empilhou os papéis e mergulhou na vida.

Sorocaba, 31 de outubro de 1997.

Raquel DPires
Enviado por Raquel DPires em 12/07/2012
Código do texto: T3774609
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