Fuga

- Até mais. Não demore.

- Sempre repetidas as mesmas recomendações. Para que tanto zelo por alguém que despreza a tanto tempo? Queria entender. Não sei se você mente ou gosta de ser assim, tão egoísta.

- O que é egoísmo? Aquilo que tem pelo que não é seu? Achar-se dono de alguém por quem se quer jamais se esforçou?

- Não estou falando disso.

- Ah, desculpe-me.

- Desculpar o quê? Já me acostumei às nossas pílulas de agressão diárias.

- Não sei se volto.

- Não há necessidade.

- Não mesmo?

- Não mesmo.

- Adeus.

Chovia. Pegou o táxi. Durante o longo trajeto, percebeu que o motorista focava-a com olhar curioso, tentando ver seu rosto através do retrovisor. Procurou não pensar em nada, a semana já havia lhe dado duras surpresas. Sabia que era uma estranha, em um lugar estranho com um estranho taxista a conduzindo. Tentando mostrar neutralidade, abriu um livro, passou os olhos sobre as velhas páginas amareladas. Como esperava, o motorista tentou iniciar uma conversa. Em uma fração de segundo, deu um sorriso pálido ao tentar adivinhar qual seria o assunto – o tempo, sua estadia na cidade, a viagem, o hotel – com suas respectivas respostas de fuga:

- É, está quente. Só ficarei alguns dias. Cansativa, mas valerá a pena. Já conheci outros melhores.

Errou. Como penitência teve de suportar uma aula gratuita do curso “cidade desconhecida para principiantes”. Estava preocupada com o tempo, uma preocupação singular que a tirava do sério. Enfim chegou, não tão cedo quanto imaginava, mas ainda havia como satisfazer seus propósitos naquele lugar ermo e distante. As desculpas, as demoras, as necessidades, não tinha mais nada para a incomodar. Gritou. Teve medo de si mesma. Não se imaginava tão supérflua. Não voltaria, não esperaria mais. Seu desprezo aparente pelo que passou ofuscava a vontade pungente de ser. Ou deixar de ser. Não queria a liberdade, apenas prender-se em si mesma, para que suas ínfimas idiossincrasias não a fizessem voltar atrás.

- Até mais, não demoro.

- Não há necessidade.

- Desculpe, jogaremos fora nossas pílulas.

- Não há necessidade.

- Não mesmo?

- Não mesmo.

- Até mais, não demore.