Menos do que simples humanos…- Versão alargada...-

"Crónica de tempos futuros..."

Auclair

Olho o céu da tarde que em tempos foi azul, mas que hoje é de diversas cores, olho o céu como olhos humanos olham há uma pequena eternidade, o tempo da espécie, mas apesar de o olhar da mesma forma as coisas são diferentes, apesar de sentir da mesma maneira as coisas de facto são e serão para sempre diferentes, não só porque o céu não é da mesma cor, mas também porque sendo, acabamos por não sermos os mesmos…

Em termos pessoais sinto-me o mesmo, mas sei que não o sou…porque apesar das sensações e a forma de as percepcionarmos serem o verdadeiro juiz da mente de um homem, desta vez o juiz está enganado…ou pelo menos assim me ensinaram desde o berço…

Mas apesar do céu estar deturpado, não deixa de ser um céu de um fim de tarde, não deixa de ser um céu belíssimo…

E dou comigo a perder tempo, ou talvez não, a filosofar e em simultâneo a pensar no que me trouxe até aqui, até este fim de tarde em que observo de forma inocente o céu…:

Somos por fim e no fim o que resta do original, e por isso assumimos o papel do original, cumprindo o papel para o qual fomos desenhados, para o qual fomos criados, mas indo para além dele, substituindo o criador pela falência deste e pelo seu fracasso, ambas as leituras são possíveis e admissíveis porque ambas as leituras são reais, ambas dolorosas, ambas dramáticas, a primeira por contingências naturais a qualquer espécie, a segunda por culpa própria dessa mesma espécie…

Somos fruto de uma ideia louca destinada a preservar a espécie, um conceito teórico que devido à urgência dos acontecimentos teve que se tornar em algo de uma forma premente prático, numa primeira fase de expansão, numa segunda em fase de retracção, em fase de extinção…

E tudo começou quando se deu início à exploração dos planetas exteriores com real possibilidade de albergarem humanos e não apenas os seus autómatos.

Mais ou menos no começo da exploração do cosmos cientistas algo visionários pensaram que se podiam transformar algumas atmosferas, bem como os solos dos seus planetas, e as adequar assim aos humanos, não apenas a pequenos grupos exploratórios, mas a vastos milhões de humanos, possibilitando desta forma a real criação de colónias e não somente o estabelecimento de postos fronteiriços, ou meramente exploratórios.

A esse processo deram o nome de terra-transformação.

Em termos simplistas o processo era o inverso do do efeito de estufa que tantos problemas causar à Terra…

Este processo era pois atractivo tanto pelas imensas possibilidades que oferecia como por se conhecerem plenamente os seus fundamentos teóricos, sendo que se começaram as experiências reais e as em modelo informático, com resultados animadores, e que só esperavam a ocasião propícia para se testarem por completo…altura que chegaria quando uma equipa completa tocasse num planeta e testasse o que na Terra era animador, só nessa altura saberíamos se tal não passava de uma bela ideia morta à nascença depois de ter saído do campo teórico e ter entrado no prático…

Durante muito tempo pensou-se então nessa técnica vanguardista para transformar o nosso planeta mais próximo que teria condições para albergar os tais milhões, ou mesmo biliões de humanos, o planeta Marte, que em tempos recuados tivera mares, rios e sobretudo uma atmosfera complexa, logo que poderia suportar vida.

Mas na altura em que a humanidade nasceu Marte era um deserto quase estéril há muitos milhões de anos, sem água, apenas com algum gelo e somente com um resquício de atmosfera e um solo quase estéril para os padrões e necessidades humanas….

No entanto, mesmo apesar desse resquício, quando lá chegámos constatámos que a transformação completa da atmosfera para a adequar a nós era impossível, era inviável…e o solo também, porque sem uma atmosfera o solo não seria quase nada útil aos humanos por não suportar produtos que alimentassem os humanos…

Numa imagem simples do que se passava, era como querer transformar/converter água envenenada em água pura. Tal era impossível, no máximo podia-se tornar essa água menos impura, mas ainda imprópria para consumo humano…

A solução passava então por criar do nada algo de completamente novo através da engenharia genética, a solução passava por criar humanos que conseguissem suportar essa atmosfera e ao mesmo tempo suportarem a da Terra.

A hipótese de meros clones era inviável, porque os clones mais não eram do que uma copia melhorada do original humano…

Era preciso ir muito mais longe…

Era preciso começar algo de novo, algo do nada, era preciso criar humanos com uma invulgar resistência em todos os aspectos, mas humanos de uma forma inequívoca e inquestionável, com o aspecto exterior humano e o mais possível com a sua fisionomia interior também humana, mas com as tais melhorias que iriam possibilitar a sua sobrevivência em atmosferas que liquidariam em poucos minutos os outros humanos...

Era preciso criar um híbrido, algo que a evolução natural da espécie poderia ocasionar, mas isso demoraria provavelmente milhões de anos, e nós não dispúnhamos desse tempo…

No meio deste tremendo desafio tecnológico sem igual na história, entraram também considerações éticas, morais, religiosas, antropológicas, espirituais…

O novo ser deveria ser totalmente humano, até na sua identidade, até na ideia que tinha de si próprio, não podendo considerar-se inferior pela sua origem ser um laboratório e não um ventre, nem superior pelas extraordinárias capacidades físicas e intelectuais que o tornavam uma versão quase nova do seu criador…

E como ser humano na sua génese, na sua essência, ele não seria um escravo genético e muito menos um trabalhador forçado, seria apenas humano com capacidades extraordinárias que fora criado para possibilitar a sobrevivência dos seus irmãos naturais mais vulneráveis perante o ambiente hostil que o esperava fora da Terra ou fora dos recintos climatizados.

Não se esconderia a sua origem a estes humanos, eles saberiam o que eram desde o berço, mas de forma a assegurar que não se sentissem menores pela sua origem, o seu papel vital no seio da espécie humana seria claro, além de não se ter dividido a espécie, de se considerarem humanos quer aqueles fruto da evolução natural, quer aqueles frutos da evolução condicionada…

Claro que muitas vozes se mostraram indignadas com este caminho, mas a evolução sempre caracterizara o homem, sendo que desta vez o homem se limitaria a apressar um processo natural por uma mera questão de sobrevivência e não de capricho cientifico ou politico…

Apaziguadas as consciências morais e éticas pela força de um imperativo de sobrevivência da espécie, alcançou-se o consenso desejado e assim tudo começou…

Ao fim de alguns anos e muitos fracassos surgiu por fim o ser desejado, com resultados que superaram até as melhores das expectativas, pois além de corresponderem ao que fora solicitado, os novos humanos tinham também o dobro da esperança média de vida de um humano original.

E quando começaram a reproduzir-se entre si, a saírem de ventres humanos, o estigma de serem um produto laboratorial desvaneceu-se por completo…

E foi assim que povoámos primeiro Marte depois os planetas seguintes…

Claro que havia algumas diferenças exteriores, o novo ser era bem mais alto e corpulento que os humanos originais, numa multidão destacavam-se claramente, mas como de poucas dezenas em apenas uma geração começaram a serem muitos milhões, passou a ser comum a multidão ser composta tanto por humanos naturais como pelos outros…isto na Terra, porque nas colónias e nas suas atmosferas inviáveis eram eles a maioria pelas razões acima referidas…

Foi então que surgiu um movimento de puristas radicais, de humanos que reclamavam que o espírito inicial da espécie estava a ser desvirtuado, que os novos eram aberrações e uma pálida cópia do original, que eram um insulto a Deus por nos atrevermos a trilhar caminhos do domínio de Deus…esquecendo que esse Deus para em quem nele acreditava não conferiu aos crentes soluções para determinados problemas, que lhes deu apenas a inteligência, e que fora com essa inteligência que os humanos tinham criado uma solução para o problema urgente de colonização do espaço exterior…Mas o movimento ganhou uma enorme força entre os humanos originais que passaram a ser minoritários, mas que ainda dispunham de um vasto poder, da maior parte do poder e do ónus de serem para todos os efeitos originais e de tal ordem esse movimento se tornou hostil que linchamentos ou agressões aos outros humanos passaram a serem frequentes, do total controlo das autoridades policiais e judiciais que naturalmente condenavam esses a actos, mas a coisa começou a ser de tal ordem que a solução passou a ser vedada a permanência ou a frequência da Terra mas não do resto das colónias…A necessidade deles nas colónias fez com que se tolerasse a sua presença nesses locais, ignorando ou não querer ver o facto indesmentível de sem eles a exploração do espaço ser pura e simplesmente impossível…Apesar de não terem reagido a essas agressões, a essa atitude, limitando-se a emitir comunicados oficiais onde mostravam o seu desagrado e incómodos, não reagiram, tratando os humanos originais que com eles trabalhavam como se nada se passasse…Nunca se chegará a saber se esta forma pacifica de estar era fruto da programação nos genes ou pura e simplesmente eles eram naturalmente assim, nunca chegaremos a saber porque alguns registos se perderam, porque se eles tivessem reagido as suas características e número superior fariam com que a tomada de poder fosse uma espécie de mero passeio…Mas eles não reagiram, mas no entanto o ódio na Terra fora espalhado pelos caciques do costume, e gerou-se um inevitável antagonismo entre estes dois tipos de humanos, ignorando que esse ódio era um sinal quase subliminar de uma parte da espécie que sentia estar à beira do fim, que se estava a extinguir…Entretanto das colónias chegavam noticias dispersas mas cada vez mais consistentes que as duas humanidades se tinham começado a procriar entre si, surgindo também relatos da existência de crianças que constituíam então uma terceira humanidade, ou a forma divina do natural e do não natural se misturarem e de tal gerar algo que escapava a qualquer topo de conotação ou de rótulos…E os relatos indicavam que essa terceira via em termos fisionómicos mais próxima da via original tinham um assombroso poder de reprodução e os seus números passaram a serem predominantes…Mas a humanidade original estava completamente cega pelo ódio, continuou a insistir na separação mesmo à nova via, de tal ordem que essa separação indesejada só começou a acabar quando a própria Terra viu as suas condições piorarem de tal ordem que fora das cúpulas protegidas só poderiam sobreviver os novos humanos e a nova via que em número ultrapassavam já os humanos naturais em declínio mesmo na própria Terra…

E no seu fim, e apesar de saberem que nos éramos a resposta para a não extinção da espécie, os antigos reclamaram para eles o papel de criadores, de originais, fazendo-nos sentirmo-nos menores, apesar de tal ser irrelevante porque o que estava em causa era a sobrevivência da espécie humana no seu todo e não meramente numa parte…

E num espaço muito curto os originais acabaram por desaparecer, sendo que até ao fim não abandonaram a ideia de serem únicos e de que com eles se extinguir a espécie, pois equivaleram-nos a pouco mais do que a chimpanzés inteligentes, e assim sendo a espécie morreria quando o ultimo falecesse…

Mas nós sentíamos da mesma forma, nós víamos as coisas da mesma maneira, nós éramos de facto iguais, tínhamos a mesma alma, e com o advento da terceira via as mesmas dimensões exteriores dos originais…

Mas a diferença que permitiu a sobrevivência da espécie era também a nossa condenação, porque o legado maior dos humanos que se tinham extinto foi o de nos fazerem sentir para sempre menores e estigmatizados, uma sombra em nós que não desapareceu mesmo que esse humanos que tanto nos odiavam não estivessem por perto…

Porque o maior dos defeitos humanos, a sua louca necessidade de catalogação, de descriminação sobrepõe-se ao bem que ele imana, às suas maravilhosas criações…pior do que a pior das armas que ele criou, a descriminação passa por ser o seu objecto mais odioso…

E é assim que chegámos a este fim de tarde onde contemplo o céu de diversas cores, onde me recordo que novas leis surgiram recentemente para estabelecer limites entre nós, os humanos da segunda, terceira e quarta via e os novos que começámos a alterar com a tecnologia, não gerando um novo homem, pois aprendemos a lição do passado, mas implementando nos mais frágeis uma série de dispositivos mecânicos que os transformaram em algo superior a nós, e por isso tivemos necessidade de criar essas leis para repor a ordem das coisas, para os recolocar no devido lugar, ignorando que com isso acabámos por fazer o que tanto condenámos aos originais…

E foi assim que apesar de termos garantido a sobrevivência da humanidade, e apesar de terem já passado alguns séculos desde que o ultimo humano original morreu, ainda nos sentimos menores e inferiorizados, apesar de já não haver motivo de comparação que nos faça sentir menores, apesar de sermos únicos ainda hoje e para sempre nos sentiremos de facto estigmatizados, nos sentiremos

Menos do que simples humanos…

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 03/11/2011
Reeditado em 03/11/2011
Código do texto: T3315650
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