VENTO
Sempre que faz frio e venta muito, gosto de ficar na cama até tarde ouvindo música, mas dessa vez foi diferente, resolvi sair, precisava saber se gostava mais da cama, da música ou do vento.
Ao levantar para ir ao banheiro, pensei que talvez hoje não fosse o melhor dia, esqueci onde estavam os meus chinelos e o chão estava muito frio e me veio a constatação de que os pés têm palmas, como as mãos. Achei que essa constatação não era um bom sinal, se meu destino estiver mesmo escrito nas palmas das mãos, poderá também existir uma parte dele nas palmas dos meus pés, assim desde criança, quando fiquei de pé pela primeira vez, estaria não só ignorando esse pedaço como também tentando contê-lo com o peso de todo o meu corpo.
Por trás da música que ouvia, havia um silêncio, um silêncio gigantesco, como um grito do maior trovão, era tão alto esse silencio que não conseguia prestar atenção na música. Senti que não apenas o chão estava frio, mas toda minha vida.
Ao atravessar a porta de saída, ele me recebeu, vinha não sei de onde, mas vinha realmente frio, como uma chuvarada de agulhas, perfurando meu corpo.Sempre que ficava na cama ouvindo música, pensava que ele fosse quente, assim como eu, e que sua corrida constante fosse justamente para correr do frio que habitava em todos,pensei, que ele como eu, procurava um lugar onde a temperatura fosse compatível, pensava até que ele fugia de mim, por ter em mim um ser mais frio que qualquer inverno, que me dominava sempre que estava fora da cama.
Mas agora vejo que é frio, frio e disforme, me abraça de forma tão completa que nenhuma parte do meu corpo não se sente abraçada, me rouba todo o calor com tanta ferocidade que me sinto nu, como se debaixo da minha roupa, da minha carne, houvesse um outro corpo, esse corpo agora despido sem nenhum pudor do vento, se ver alçado à um eclipse, em que toda luz e calor do sol são obstruídos, deixando assim a Terra, o universo, num gelado estado de nudez.
Deu-me uma imensa vontade de voltar para minha cama e ouvir música, mas não estava a altura de mim mesmo, como o vento, agora estava desgovernado e andava pelas ruas em busca, em busca de quê? Não sabia, mas em mim não havia nenhuma dúvida, estar voando assim desprovido d qualquer armadura, deixava-me tão próximo daquilo que chamamos de natureza que poderia vagar pelo mundo como um grande sopro de vento.
Andei pelas ruas, estradas e parques até anoitecer. Até agora não sei se dormir em algum ponto ou se parei para descansar, ou se ao menos sair de casa.
Como uma borboleta que surge depois de ter sido a vida toda uma lagarta, voei, voei até me dar conta que mudei, não cabia mais à minha nova espécie rastejar pelo chão, agora eu voava, era da família dos aéreos, dos que voam, das borboletas, do vento.
Como o sol que volta depois e cada tempestade para secar o pranto dos céus e por consolo nos dá o Arco-Íris, voltei da minha empreitada sem ao menos ter me perguntado o que me encantava mais, a cama, música ou o vento, mas agora quando acordo, faça frio ou um insuportável calor, abro as janela e deixo o que está a minha espera entre, como quem recebe a melhor das visita.