Um Som No Tempo…

Dizem que estamos no fim de todos os tempos

Dizem que estamos num canto daquilo que foi um Universo composto de biliões de galáxias, habitado por infinitas espécies, tão numerosas que deixaram de poderem ser contabilizadas, porque às ainda vivas deveriam somar-se as que existiram, mas tal número se revela impossível de contabilizar devido precisamente ao seu vasto número que se estendeu por um tempo também ele difícil de contabilizar…E como só enumeramos aquelas de quem temos algum tipo de registo, os que temos ao nosso dispor apesar de vastíssimos revelam-se parcos para a dimensão do tempo e do próprio Universo…

Dizem que cada espécie teve uma determinada função na ordem universal durante o tempo que existiram…

E eu nada sei do que acima foi dito, só tendo uma certeza, a certeza que cada espécie tinha uma função, porque a nossa é de recolher e arquivar os registos dessas espécies que de alguma forma chegaram até nós, constituindo assim uma base que reunida conta a historia das espécies do Universo, que contam assim a História do Universo. Houve espécies que podemos dizer que atingiram um patamar de inteligência que as levou a ereger civilizações, mas não civilizações tecnológicas que as permitiram mandar para o espaço sinais de que existiram, e por isso essas espécies não contam, nasceram proliferaram e morreram mas não contam, porque não deixaram para o Universo qualquer tipo de vestígio que sobrevivesse ao seu fim, ou ao que deixaram depois de se extinguirem, não contam, porque só contam aquelas que nos registamos.

Cada espécie tem um tempo de vida, que pode ser mais ou menos longo, depende de uma ordem de factores de tal ordem vasta que o tempo de vida dessas espécies é aleatório, a única coisa certa e previsível é que cada uma nasce, floresce e fenece…tudo o resto que possa dizer é especulativo…

E também são inúmeras as formas dos seus vestígios com que fazemos o nosso arquivo Universal, sendo que consideramos um Registo se tal constituir uma prova que provem de uma inteligência. Por isso temos que definir o que são ondas naturais de ondas que, depois de codificadas, provem que foram frutos de uma inteligência. Por vezes quasares, ondas de rádio e demais fenómenos naturais podem ser confundidos com algo que nos interessa, com as tais marcas de uma inteligência, e para tal, como disse, temos que as dissecar, não obrigatoriamente saber o que dizem, pois muitas vezes tal se revela impossível, mas meramente distinguir o que é natural e o que foi criado…

Depois de feita essa distinção, o registo passa para a tal base de dados, também ela de dimensões inconcebíveis, pelos números que a constituem.

Os exemplos dessas marcas de espécies que desapareceram são também eles imensamente vastos, imensamente diversos, mas podemos resumir tal a dois grupos: sons e imagens, ou a uma mistura dos dois. As espécies entre si são muito diversas, mas é universal e comum a forma como esses registos chegaram até nós: via qualquer tipo de energia que foi mandado ou que escapou para o espaço exterior, que navegou nele durante milhões, por vezes biliões de anos, até que foi captado, logo conhecido, logo arquivado.

Esses registos constituem pois a única marca dessas espécies para a Eternidade.

Podem ter sido capazes de grandes ou pequenos feitos, nunca chegaremos a saber, por vezes espécies menores deixam-nos registos maiores, e que as tornam maiores do que espécies maiores do que elas, outras pela marca de emotividade desses registos sobressaem nitidamente entre os biliões doutros registos.

A base é na sua maioria composta ou por registos indecifráveis ou por formas matemáticas, a forma universal que essas espécies tiveram de dizer que existiram, assinalável, mas banal, porque nos dizem que eram inteligentes, mas que na realidade nada nos dizem sobre essas espécies…

A minha tarefa neste arquivo é estudar os registos mais misteriosos ou mais interessantes ao nosso dispor, uma tarefa de tal ordem vasta que ficará para os meus descendentes e para os que se seguirão a estes…

A meu dispor tenho já alguns que se destacam, mas dei comigo apaixonado com um, que revejo, que ouço vezes sem conta quando me é possível, pois confesso-me apaixonado por ele, de tal ordem me tocou pela sua singularidade, especialmente depois de o ter traduzido, ou feito uma aproximação a uma possível tradução.

A espécie que o emitiu, emitiu do fundo do Universo uma onda de rádio, e ela demorou biliões de anos a chegar até ao Arquivo, sendo que ela está morta à muito, bem como o seu sol, bem como a sua galáxia. Por muito que tenha evoluído, tudo o que ela fez ou tocou já se extinguiu por ter ocorrido há tanto, tanto tempo…

É pois impossível saber se foram grandes, se forem pequenos, se foram grandiosos, se foram menores, a que dedicaram o seu tempo, e muito menos o seu aspecto, o seu nome, pois nada resta dela, nada, apenas esse registo.

Devido à distância e à erosão desta, o registo foi danificado, sendo que apenas temos um som, um breve som, e nada mais…

Mas esse som é o som mais único que temos, logo o som mais único do Universo.

A tradução é que constitui uma emoção, uma expressão de contentamento, de vivacidade, de alegria, uma emoção em estado puro, em estado puro que traduzimos por isso, vivacidade, alegria, de uma forma tão característica que a torna impar.

Essa espécie de nome desconhecido pode ter feito actos horríveis, pode ter dizimado os elementos da própria espécie, ou de outras espécies quando saiu do seu planeta, se é que chegou a sair, pode ter feito um sem número de coisas horríveis, mas nada sabemos, nunca saberemos, sabemos apenas que a sua marca no tempo será essa expressão de alegria única, sem paralelo em nada que tenhamos no Arquivo, um som tão sedutor que apesar de desconhecido se torna contagiante a quem o ouve.

Um dos nossos sábios, na medida do possível traduziu essa emoção como

“Riso, gargalhada”

A impressão dessa espécie no Arquivo do Universo, que ficará até ao final dos tempos é essa.

Podem ter sido menores, medíocres, carrascos, mas o que legaram ao Universo como memória foi isso, a mais profunda expressão de contentamento genuíno que uma espécie é capaz, de tal ordem que a sua tradução foi instintiva, de tal forma é única…

Uma gargalhada…o seu Som No Tempo…

Nota:

As ondas de rádio que emitimos desde o século XIX viajam pelo espaço e lá estarão muito depois de qualquer vestígio humano se apagar, essas ondas lá estarão até ao fim dos tempos, até ao fim do Universo.

Um dos imensos sons emitidos foi a gravação de uma gargalhada, o que mais do que a arte, é a maior e mais personalizada marca humana enquanto espécie.

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 18/09/2011
Reeditado em 18/09/2011
Código do texto: T3225988
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