Página em Branco VIII(Recordações da infância e...)

Mais uma página em branco num dia de cinza, de chuva, mais uma página em branco e memórias a quererem preenche-la…Ontem à noite quando a sugestão de uma amiga Borboleta alterava a fotografia de um site onde publico alguns poemas e textos, escolhi uma velha foto minha numa praia, não devia ter mais de 2 anos. A foto anterior era algo pesada, eu de capa preta e de máscara de Vader, o anti-herói da saga Guerra das Estrelas e que reflectia parte do meu estado de espírito…Após essa conversa com a bela amiga Borboleta, fiquei mais animado e decidi colocar uma foto mais luminosa, tendo escolhido essa de bebé, uma das minhas fotos preferidas pois foi tirada numa das minhas praias favoritas, logo eu que sou mais um homem de cidades e de montanhas, procurando apenas o mar para me libertar, para libertar o espírito, para deixar que os meus fantasmas ou neuras se dissipem no oceano e me possam dar um novo alento…O mar para mim é como um daqueles bons amigos que vemos poucas vezes, com os quais falamos pouco, mas ao qual não podemos deixar de recorrer quando a mente nos pesa mais que o espírito e precisamos de alguém que nos ouça com o seu olhar ternamente sábio, ou que nos dê os seus conselhos que tornam o fardo da vida numa bela brisa fresca, num dilúvio de ternuras que nos enchem a alma e nos fazem felizes. Visitamos essas pessoas poucas vezes, mas essas poucas parecem mil. Além do mar tenho assim dois amigos: o Antunes e a Patrícia, seres que estimo de uma forma invulgar e que velam à distância por quem sou e no que me estou a transformar. Nem sempre é fácil falar com eles, pois essa conversa possui uma carga emotiva difícil de suportar, é preciso estar preparado, mas quando a conversa flúi, tornar-se em momentos inesquecíveis, e a conversa pode ter tido lugar à uma eternidade, mas o seu poder em mim faz com que pareça à distância de apenas uns minutos. Tenho outros amigos e amigas com os quais adoro conversar e estar e que também velam por mim, como a recente e doce Borboleta que indirectamente deu origem a este texto, mas nesta metáfora do mar refiro aqueles dois, suaves vagas de afectos que sinto que não sabem que tenho por ele e por ela porque nunca ouve a ocasião ou a coragem sensitiva de lhes dizer.

E a minha relação com o mar é essa: longe, mas perto, de temor, mas de amor, de intranquilidade, mas de uma paz suprema quando a ele me entrego e o deixo levar para longe o que me consome.

Mas voltemos a essa foto do tempo em que o mar era o mar e mais nada, apenas imensa água e o temor de lá entrar por não saber nadar e as ondas serem uma barreira gigante insuperável até que pelos 6 anos comecei a nadar e a superar esse medo. Mas esses anos ainda estão longe e interessa essa foto de uma criança feliz, possivelmente nas suas primeiras férias em que já andava, na antevéspera da revolução de Abril de 1974 que mudou as nossas vidas para sempre.

Não me lembro desse verão, era ainda muito novo, mas deve ter sido um verão feliz pelo sorriso que exibo na foto, um sorriso parecido com o da minha sobrinha mais nova que é a criança mais feliz que conheço.

Sei apenas que foi o início de uma bela relação com aquela praia, a praia de Mira a pouco menos de 30 quilómetros da minha cidade de sempre, foi o início de uma relação de amor com aquela praia que os anos seguintes por acaso vieram a reforçar:

A memória seguinte daquela praia apanha-me com 12 anos, corriam os agora chamados loucos anos 80, eu já sabia nadar, mas ao mar revolto preferia a pacifica lagoa, talvez porque nunca gostei de coisas violentas ou talvez porque a lagoa permitia que nadasse livremente, sem me preocupar com correntes ou com a água fria. Memórias de um principio de Setembro em que a maioria dos turistas estavam de saída e que nos éramos dos poucos a lá estar, memórias de ter sido ali que aprendi o amor pela leitura, nesse Setembro que misturava as primeiras chuvas Outonais com o calor de um verão que estava a desaparecer mas que ainda se fazia sentir…Memórias de loucas pescarias na lagoa com o meu irmão, em que pescava pouco mais do que nada, mas que pescava pelo gozo da espera e das longas horas de espera na companhia daquele que ainda é hoje o meu melhor amigo, memórias de pescarias que se prolongavam até à noite e em que regressávamos a casa com dois ou três peixes do tamanho de um dedo convencidos que tínhamos pescado um espadarte…Depois os anos avançam e lá me encontro com a minha primeira namorada, naquelas alturas em que ainda não somos nada um ao outro mas que o amor começa a espreitar suave e docemente, à espera de um beijo dado à noite na praia, um primeiro beijo seguidos de outros que espalhámos na areia e por ternuras intensas e escondidas que mais adiante estabeleceram entre nós uma ligação que pensava para sempre mas que se perdeu quando outro Setembro acabou, deixando em mim a tristeza da perda, mas a recordação da alma, dos olhos tristes e sofridos e do corpo da bela Susana que acabei de perder como tantas outras no tempo como lágrimas na chuva…Memórias de um Agosto entre exames da faculdade em que eu e mais 6 amigos aborrecidos pela pasmaceira da cidade decidimos aparecer de repente em casa de um amigo nosso em Mira, uma casa grande, mas que nos esquecemos de avisar da vinda e que lá tinha a numerosa família em férias…A cara de espanto dele e da família foi algo de notável…O que vale é que a casa era de facto grande e lá se conseguiram arranjar 4 quartos a mais…Não querendo sobrecarregar o amigo, decidimos não dar a despesa da alimentação e comprarmos e cozinharmos a nossa própria comida. O problema é que o dinheiro era pouco e estava contado para o tabaco e para a discoteca e pouco mais…Não havia problema: eram todos bem gordinhos e decidiram fazer dieta; todos menos eu que na altura ainda era bem magro e que me assustei perante uma perspectiva de uma refeição frugal, constituída por um pão com fiambre, uma fatia de tomate e…uma garrafa de vinho para cada um…dado a garrafeira da casa ser abundante. O que vale é que a mãe do amigo se apiedou de nós e nos dias seguintes comemos à mesa belos cozinhados, sem vinho que a senhora não gostava de excessos…Memórias desse belo verão que foi o último que passámos juntos pois a curva da vida que define o futuro definiu que juntos não nos haveríamos mais de reunir e alguns problemas e questões pessoais que de nada valem acabaram por partir esse grupo e de nos fazer passar férias quando muito com um ou com dois do grupo original, mas nunca mais juntos, para minha grande pena pois foi de todos os grupos aquele que eu mais gostei, foi o meu grupo de faculdade, de farras académicas de loucuras que não cabem aqui, de laços que entre copos e camaradagem julgava para sempre mas que se perdeu para sempre quando eu menos o esperava.

Memórias de mais um amor entre a areia, de mais tristezas pela separação de mais ternuras que se dissolveram na areia entre lágrimas e discussões fúteis, entre juras de amor que se perderam na voz das sereias que olharam por nós enquanto os corações batiam no mesmo compasso e as almas se bebiam uma à outra, memórias, memórias…

Mas nesta mescla de dor e de alegria, nada apaga o carinho pelas boas recordações, pela magia de uma praia por concentrar tanta coisa memorável num tão curto espaço de tempo, tornando de todas as praias que conheci Mira a mais querida, a mais amada, cujas ondas da saudade me fizeram hoje cobrir com as suas estrelas e ouriços do mar de lembranças mesclados pela areia da ampulheta do meu tempo que não para de passar e de acrescentar novas memórias, novas linhas a mais esta página inicialmente em branco, mas agora mais uma vez cheio, a transbordar de mim, dos meus e minhas que alguma vez fizeram parte de mim nessa estrada da vida que leva ao infinito, memórias…