Sou o bolso furado
Inquieto, sentado e constrangido pelas condições a que me julgavam e tratavam, permanecia ali nos limites de uma avenida lotada. No fundo não compreendia, porque Eu dormia no frio, ao relento. Mas também já nascera ali, nas raízes profundas dos maus tratos. Já me acostumara desde cedo a dormir vendo a cara da fome, sentindo o gosto da chuva que banhava meu corpo quando por má sorte, não achava um lugar que me cobrisse.
Depois de algum tempo, da infância com roupas rasgadas, vivendo de restos, acabei achando que tudo isso era o natural do mundo. E tão pouco sabia meu nome, de onde viera e para onde iria. Cada dia era minha vida inteira, passada segundo por segundo, até que dormia em qualquer canto, e morria. Morria assim, para esquecer um dia e acordar vivo no outro. Esperando que talvez, naquele instante eu pudesse receber algum carinho, algum pão, algum cobertor.
Mas no fundo sempre trouxe alguma felicidade que às vezes quando recebia qualquer coisa, de alguma alma que tinha pena de minhas pernas magras; estourava no peito a vontade de com a mesma raiva encanada, abrir um sorriso de alívio.
E vivendo assim de achados no meio das pessoas que passavam e se esqueciam de mim, cresci sem perceber. Com alguma brutalidade que emanavam de minhas poucas palavras, mas ao mesmo tempo com aquele sorriso torpe que teimava em aparecer em minha cara.
Sou a cara, de todo brasileiro que vive sempre no mesmo lugar. Descobrindo-me homem sem palavras, sem diálogos, sem forças. Não sei escrever, não sei ler. Vivo procurando as informações de onde elas podem me surgir. E me encho de alegria, ao passar em frente a uma loja, dessas de eletrodomésticos, para ficar vendo aqueles telões coloridos, com pessoas lá dentro. E como elas fazem para conseguir se enfiar lá? Sempre quis saber desde menino. Sempre acompanhei tudo dali: sabia que os homens faziam guerras, sabia que as mulheres bonitas se mostravam, sabia que os traficantes dominavam o país, que um tal de EUA dominava o mundo, que os políticos são corruptos (o que é ser corrupto?). Gosto dessas telas coloridas é incrível como tudo é lindo lá dentro.
Às vezes penso que qualquer um desses que vivem lá dentro dessas telas poderiam me pegar daqui, e me transportarem lá para dentro do paraíso. Mas depois, acabo achando que não existe paraíso. E também já não sei mais quais são as forças que emanam de mim para cumprir a sina de minha vida. E se vivo na realidade, ou não sei em qualquer outro lugar, longe do mundo. Porque ninguém me vê.
Sabe que rezo um pouco. Não sei rezar, nunca entrei em uma igreja, não decoro as rimas que os féis falam. Eu simplesmente resolvo de vez enquanto que tenho que reclamar com alguém da miséria de minha existência. Porque deve haver alguém responsável por isso. Então fico em silêncio, e parece que consigo reclamar baixinho, quase pedindo piedade, para que alguém me ouça. Talvez ache que Deus no fundo é isso. Alguém que dá e que tira ao mesmo tempo, com a força de poder proibir que todos tenham direitos. Mas depois, acabo é com dó Dele. Afinal como atender a todos esses meus pedidos?
Sou o alvo o marcado. O furo no olho. O bolso furado. Sou as mazelas do mundo, todas juntas. Não deveria ter vindo, mas por força de algum acaso qualquer, vim parar sem ponto de chegada, e acabei perdido. E como pensar que assim vivendo possa eu transformar-me. Não tenho toda essa energia, para movimentar o corpo que padece. Apenas sobrevivo. O que é uma forma de vingança de mim mesmo, quase que dizendo: “Vai vive seu tolo, vive para ter que carregar o peso do mundo!”.
Olho a tarde que desce quase cinza. E percebo que nem ela se combina comigo. Não posso imaginar-me tendo-a. Se, tenho sonhos? Acho que eles ficaram guardados com meus espíritos antes mesmo de eu nascer, ou estarão presentes apenas depois que eu morrer. Sou carta marcada pelas mãos do destino.
No fundo alimento e respiro apenas do silêncio.