Não sou Humana [ 2 ]

Está mais que sacramentado.

Não sou mesmo humana. Pertenço a outra espécie.

Sou um Animallis Pensantis.

Percorro as noites interioranas. E as de além-mar.

Salto muros de cemitérios seculares.

Passeio pelas alamedas silenciosas. E isso me traz Paz.

Gosto dos mortos, das crianças e dos animais. E eles de mim.

Dos demais, mantenho uma segura distância. Enquanto os avalio.

Só se aproximam aqueles da minha espécie. Os que me reconhecem como igual. E os de coração puro.

Me são orgásticos os sons das tempestadas.

Vislumbro infinita beleza nas manifestações naturais. E na Arte.

Caminho sob a chuva - vagarosamente - e me deleito com a áqua destilada e fria. O fogo me fascina, esse portal. Invoco os espíritos de meus ancestrais.

Elimino meus medos. Testo constantemente meus limites.

Sou quase insensível à dor. Muitos se assustam comigo...

Sou suave, porém. Me encantam as pequenas delicadezas.

Gosto de carinhos, afagos e de tudo o que é gentil.

Mas sei ferir - impiedosa - tudo o que ofende o que me é valioso...

Vivo além do senso comum humano.

Desprezo seus conceitos banais, de suas formas de subjugação e segregação. Seres brutais que exterminam a própria espécie.

Desprezo aqueles que tolamente crêem que a Evolução já atingiu qualquer patamar definitivo. Enquanto inventam mais armas para matar seus próprios filhos, não percebem as novas formas de vida que estão - silenciosamente - surgindo. Seres diferentes, inusitados. Aparentemente humanos. Só que mais sábios, mais justos, verdadeiros. Que praticam a mais honrada compaixão.

Mas são ferozes, se preciso...

E quando os "humanos" os encontram, paralisam. Os sabem mais fortes. Mais nobres. Percebem vulcões em atividade por detrás das retinas doces. Mas não imaginam o quando lhes é apurada a lógica e o instinto animal. Nem suspeitam de seu domínio sobre bem e mal.

Contudo, sentem pavor. Talvez do preciso gestual, felino.

Ou da voz quente e harmoniosa que estranhamente remete ao rugido.

Ou do olhar penetrante que lhes analisa a alma.

Quem sabe até sua extrema bondade não lhes provoque a ira ?

Certa vez precisei de uma transfusão de sangue. Cerca de um litro.

Recusei veemente qualquer fluido humano. Virem-se, doutores !

Tem que haver outra opção! Foi confuso. Fui irredutível.

Mas foi possível. O dono da clínica, após alguns telefonemas, me apresentou o plasma sintético. Americano. Ainda raro no Brasil.

- Maravilha, doutor ! Como o senhor conseguiu isso ?

- Com um pesquisador amigo meu. Não é tão completo como o

plasma humano, por isso vou aplicar também um coquetel

vitamínico muito concentrado.

- E por que o senhor faz isso por mim ? Poderia ter me

obrigado a aceitar o sangue...

- Porque sei o que você passou. E fiquei curioso com o

seu comportamento. Toda a equipe ficou. Você controlou a

hemorragia, a asfixia, acalmou a pessoa que lhe socorreu

e ficou serena todo o tempo. Até riu da situação !

Outra, em seu lugar, não teria resistido.

- É que não entro em pânico. Não sei bem...

Acho que fui programada prá sobreviver...

- Percebi isso. Você é uma garota durona, viu ?

E bem humorada também. Foi hilário quando você disse,

ao final do procedimento: "Senhores, agora que está tudo bem,

com licença que eu preciso desmaiar ". E desmaiou mesmo !

- Eu lembro...rs...

- Bem... a transfusão vai durar o resto da noite. Vou deixar a chefe

da enfermagem a seu lado o tempo todo.

Agradeci muito. Depois sorri um sorriso novo. Secreto.

Naquele dia tornei-me 27% menos humana.

E me senti um ser melhor.

Claudia Gadini

27.01.06