Fumaça
As perspectivas daquele ar empapuçado, cheio de nuvens de fumaça que inundavam os pulmões limitavam as observações. Porque ou se ligava aos acontecimentos, ou àquele cheiro de cigarro tragado, invadido, bandido. Justo porque nunca colocara na boca alguma coisa do tipo. Não que nunca tivera vontades de se deixar levar pelo vício, mas porque a consciência densa e exata que possuía, lhe martelavam dizendo que sim e que não. Aquele dia, pois, se lhe oferecessem, começaria a fumar. Só pelo gozo mesmo, por esses ares de rebuliço, que de vez em quando invadem a alma. Experimentou por instantes aquilo tudo calado, silenciado; e não mais agüentado o peso daquelas atitudes zoneias tomou um táxi e descobriu que não tinha rumo. O escritório, já abandonara a tempos, sobrevivia de achados e perdidos, e era a graça triste que chorava por obter a cada dia. Então nesses dias de feriado, que estão todos com a família, comendo carne, sorrindo amarelo, e vivenciando um amor enquadrado; limitava-se a escolher os caminhos da quase liberdade que tinha.
Em meio a tantas coisas de nada a fazer, parou o táxi bem no alto de morro, e decidiu que ali ficaria. Andou um pouco por entre as folhas caídas de uma grande árvore, e procurou limpar os pulmões, da casa de perdições que habitara antes. Assim meio que desintoxicando, sorriu por pensar nessa possibilidade de haver um vento livre varrendo seus alvéolos. E andando sem olhos, apenas com as pernas um pouco magras, despercebido, esbarrou sem querer em uma moça, que beirava seus 15 anos.
Os olhos se ergueram até o busto da menina moça, e aos poucos foram de encontro aos dela. Tímida desviou sem querer, quase que pedindo desculpas, por ter invadido o espaço daquele vadio. Ele caboclo desajeitado pensou no que poderia dizer, ou até mesmo fazer:
- Não, não... Espere. Eu que lhe peço desculpas...
- Não se incomode, estava mesmo apressada.
A menina com ares pueris já ia correndo, para livrar-se daquele moribundo:
- Hei! Meu nome é Vivaldo, mas pode me chamar de Valdo.
- Ah sim! Muito prazer seu Valdo. Dinorá, mais conhecida como Diná.
A surpresa que o nome "DINÁ" lhe provocara, fez lhe sair pela boca, palavras que não tinha pensado:
- Tem nome de mulher, rosto de menina, e ares de moça...
- Am?
- A sim, muito prazer, senhorita Diná.
Aquela conversa sem proposições, nem lhe deixara observar o corpinho de violino que a criaturinha tinha. Apesar de poder ser seu pai, os desejos de homem se aguçaram, quando mirou devagar aqueles seios rijos, pequeninos, perfeitos. No começo sentiu vergonha dos prazeres que a carne lhe dera, sem pensar. Mas depois, pensou no que poderia ser.
- O que está fazendo por aqui, Diná?
- Vim observar a cidade, espairecer.
- E você, Senhor Vi.. Vi...
- Valdo
- É, e você Senhor Vivaldo?
- Vim em busca de coisas para observar.
Mas como! Aquela menina, para sua surpresa tinha as mesmas expectativas que ele. Simples, e vagas. Somente para "espairecer", para se livrar de algo que ele ainda não sabia, mas descobriria.
- E o que uma menina com cabelos de cachos tão belos, com rosto tão singelo, quereria, observando a cidade aqui de cima?
- Já, disse, espairecer.
Essa frase seca quase cortou o diálogo que nem se iniciara direito. Por outro lado, aguçou a curiosidade de saber sobre aquela menina que tinha o corpinho cálido, e esperto.
- Sim, então ta bom, te deixo quieta espairecendo. Tchau prazer. - a menina assustou-se.
- Não, não, fique! Espairecemos juntos, vejo que está como eu.
A suplica dela, o empalideceu. Porque não tinha explicações aparentes, tirando o fato, de que ela era misteriosa.
- Pois bem, fico aqui contigo, lhe protegendo.
- Não preciso de proteções.
- Ah não!! Menina tão frágil...
- Ô Deus, queria ter essa pureza.
- Você é pura.
- Como a primeira que te entregou o corpo essa noite.
Não haveria de ser. Não tinha essas características aparentes, definitivamente não. De repente aquele ar de fumaça, de cigarro, de gente suada, da noite passada, voltou de súbito.
- Como?
- O que você ouviu.
- Não tem família, neste dia de feriado insosso?
- Minha família, é o mundo inteiro.
Não pode suportar, tudo voltou junto. Os olhares daquela criaturinha, os cheiros e desejos da noite passada. A virilidade sempre onipresente nele se aflorou, nas expectativas daquela conversa. Ao mesmo tempo se envergonhava tanto de seus pensamentos, que quase não olhava para ela, e para aquele corpo que apesar de singelo, era de todo mundo. Tinha de tomar decisões ali mesmo, naqueles instantes. E decidiu pelo que os seus amigos, ririam.
- Desculpa, Diná , tenho que ir.
- Mas porque? - a moça que estava quase pegando mais uma presa supostamente cheia da grana, indignou-se.
- Porque a cidade lá em baixo me espera.
- Mas então, desço contigo.
- O teu corpo não me é cabível, quero-te preservada, é mais linda. Tenho uma mulher que me espera, sentada aflita no sofá.
Desceu aquele morro, quase em disparada. Deixando a menina-moça-misteriosa-china-pequena. E que ocultamento estranho era aquele. Justo ele, o Valdo de todas as noites. Resignava-se, quase com um azedume que das vísceras subia-lhe na garganta. Chegou rápido em casa. Onde a mulher já lhe esperava, silenciada, calada, pela falta do homem desde a noite passada. Sabendo de todas as estripulias do marido, com uma pergunta seca, o indagou:
- Onde esteve?
- Respirando fumaça.
- Mas você não fuma.
- É verdade...
- Você por acaso, viu a Dinorá, filha do seu Manuel ali da casa em frente. Estão procurando por ela, desde ontem.
Estremeceu. Não poderia ser aquela, mulher da vida, que a pouco encontrara. E não é possível que não reconhecera aquela menina, que até outro dia brincava de bola no meio da rua. E o pior de tudo cedera-se a ela, como cedia sempre a qualquer uma, para se livrar da mulher. E agora, era a mulher que era a santa, coitada, e a outra de rosto angelical, virara um fantasma.
- Não, não senhora...
- Porque a cara de assustado?
- Porque vi um fantasma, e...
- Você está bem?
- Acho que não, preciso...
- Do que?
- De começar a fumar.