CONTOS RÁPIDOS
SEM VEXAME
Só de um vão, paredes alevantadas com palhas de coqueiro, malhadas com carinho. A coberta com folhas de carnaubeira, palmilhadas uma a uma como tapiocas enfileiradas em forno de lenha, coisa de mestre. A choupana (na verdade um quixó), naquela madrugada, era açoitada com chuva grossa e rajadas de vento que entravam no casebre assoviando, se espremendo, por entre as brechas dos talos das palhas, das varas de marmeleiros, pelas costelas do esqueleto ecológico. Começo de inverno. Casados de novo, Chico e Maria, socados numa rede limpinha cheirando a sabão de coco, atracados um no outro, enrolados num lençol alvo como goma, de algodãozinho, feito com sacos de farinha de trigo. Dois pintinhos, dentro de uma só casca de ovo.
- Xico, tá ovino isso? Cochicha a mulher apertando o marido, escanchando-se nele com braços e pernas.
- Ovino o quê, muié, pergunta o caboclo gostando daquele esfregado macio.
- O ronco, Xico, tá ovino o ronco? Insiste a mulher...
- Cuma avera de iscutá muié, retruca o homem completando: - Cum teu coração batucando dêxe jeito, num oiço nem a zuada do mêo...
- Xico, o ri tá roncano, ela quase grita, já desassossegada.
O marido se enrosca mais nela. Escorrega os lábios em seu rosto, enche as mãos calosas com suas nádegas, tenta acalmá-la:
- Maria, o ri tá inxeno, é siná qui tá choveno nas cabecêra. Ele ronca pruquê vem brabo, correno em riba das marge... Eu tô aqui, num tô? Diz o matuto esperando o aceite da amada, da sua valentia, naquela madrugada escura como breu.
Do alto do cajueiro o galo bate as asas e se esgoela afirmando ser o dono do terreiro. Não pára. Enteiriça o cantar. É um agudo atrás do outro. As galinhas se ouriçam e badalam como se acuadas por cobra cascavel. A pintainhada se alvoroça. A palhoça é uma caixa de ressonância do caos galináceo.
A mulher esperneia, pula fora da rede, tateia a calcinha, o vestido de chita em cima do tamborete. Corre se vestindo para a porta de talo de carnaúba e debanda para a curva do rio. O sol ainda está se espreguiçando no ventre da terra, forçando branquear as nuvens cinzentas dágua com os seus primeiros bafos de luz. Maria olha para a cabeceira do rio. Um rolo amarronzado vem se avolumando como um tapete sendo enrolado engolindo o leito seco, na direção dela. Uma quebradeira de mato chega aos seus ouvidos montada numa sinfonia orquestrada por preás, nhambus, guaxinins, caititus, veados, capivaras... Em debandada... Um salve-se quem puder... Aos berros, ela volta para choupana induzida pelo pavor:
- Xico, te alui, omi de Deus, a inxente vem aí...
O sertanejo metido num calção de mescla assoma a porta do barraco, mira a cabeceira do rio, mede pelo ronco a pororoca nordestina e, resignado, traça as coordenadas para a mulher:
- Maria, vem comigo, sobe no cajuêro. Vamu ficá de oi nas cabecêra. O premêro tôco qui passá a gente si iscanxa nele e se apêia no premêro barranco qui incrontá. Louvado seje Deus...