Contistas

Contistas

- Então? Eles vieram? – indagou ela, arqueando as sobrancelhas.

- Eles...elas – respondeu ele, puxando-a para dentro do apartamento – alguém te viu?

- Não – respondeu ela – ninguém me viu. Digo eles para generalizar. Então vieram. E como foi?

- Estão preocupados – disse ele – quer uma fatia de pão?

- Uma fatia inteira? – indagou ela.

Ele fez uma cara de desalentado para responder:

- Pode ser meia? Mas posso transformá-la em 4 quadrados. Dois pra cada um.

- Ótimo! – exclamou ela, com os olhos arregalados – tem manteiga?

Ele não respondeu e retornou logo em seguida com um pratinho e 4 quadrados de pão com margarina. Ela mordisca um dos quadrados e torna a indagar:

- Então, o que eles disseram? Quero saber, estou curiosa.

- Que estão preocupados – tornou ele, coçando a cabeça – Se queixaram. Que antes já era uma barra, pois nunca sabiam o que eu iria publicar porém agora, como faz meses que não publico, sentem-se desorientados...

- Bem...- fez ela suspirando – pelo menos eles confessaram, aproveitadores...

- Foi o que eu disse para eles. Chamei-os de aproveitadores. Falei na cara deles.

- Jura? – espantou-se ela – e eles?

- Falaram que é coisa do destino, que uns nascem para ganhar rios de dinheiro, outros não.

Os dois se olharam, e depois ela pousou o olhar para os dois quadradinhos dele.

- Que mais? – quis saber ela – você está escondendo alguma coisa.

- Não estou não – protestou – falaram que estão se agüentando graças aos seus textos, mas querem saber porque não tenho escrito. Fui franco. Falei que andava sentindo uma baita fraqueza.

- E? – ela arqueou as sobrancelhas.

- E...me deram 5 talões de tíquete-refeição. Acho que dá para o mês...

Ela aplaudiu eufórica, levantou da cadeira e quase dançou.

- Pode ficar com a metade – e dito isto, colocou os talões em cima da mesa.

Foi quando ela tornou a sentar-se. Com os olhos baixos, alegou que dois motivos a impediam de aceitar. Primeiro, porque eles também estiveram na casa dela, semana passada, e lhe deram 6 talões. Depois...

- Seis? – ele coçou a cabeça – puxa vida...

- É que eu tenho família. Depois, eu sei cozinhar...

- Mas eu também sei cozinhar – exaltou-se ele – hoje cozinhei uma salsicha.

- Já te disse – suspirou ela – você não me ouve. Pode cozinhar mais de uma salsicha de uma vez. Assim você gasta menos gás.

- Mais de uma...- repetiu ele, como que pensando em voz alta.

- Sim, pode cozinhar três, se quiser, experimente com três.

- Elas podem ser cozidas de uma vez só? As três juntas? – ele parecia em transe ao pronunciar as palavras – então é assim que o sujeito do carrinho de cachorro quente ganha dinheiro? Ele coloca 12...15 salsichas de uma vez....Faz todo sentido...

Ela fez que sim com a cabeça.

- Vou começar com 3 salsichas amanhã mesmo – bradou ele.

Ela lhe deu um beijo na testa, toda orgulhosa e se preparou para partir.

Se olharam por um momento, depois ele desviou o olhar para os seus dois quadradinhos. Então disse:

- Você acha que um dia pararemos de escrever? Poderíamos tentar um carrinho...

- Não sei – ela encolheu os ombros – pelo menos temos os tíquetes e alguém nos lê.

- Sim – pensou ele em voz alta – alguém nos lê.

Contistas (2)

Falavam-se ao telefone:

- Estou ocupadíssimo hoje – disse ele, tossindo – não, não estou com febre. Bom, entre outras coisas, preciso lavar um pano de prato. Está, cof, cof, cof, sim, mas a culpa não é minha, nunca tive termômetro. O que? Cof, cof, cof, bom, você podia ter me explicado melhor o negócio dos ônibus. Não senhora, não é igual ao metrô. Quando entro no metrô, ele sempre me leva para o mesmo lugar, basta eu contar o número de paradas. Com os ônibus é diferente. Além do mais, eles fazem curvas. Onde você está, afinal? E por que não passa aqui?

Cinco minutos depois.

- Depressa, depressa – disse ela aflita, entrando porta adentro, tirando lenço e óculos escuros.

Ele parecia abatido. Ofereceu-lhe um quadradinho de pão com sachê de catchup. Ela comeu com uma só bocanhada. Olharam-se.

- O que é que é tão importante que você precisava me dizer? – indagou ela, remexendo na bolsa – olha, trouxe tíquetes refeição, dá para uma semana...

Ele pegou sem pestanejar.

- Preciso te mostrar uma coisa – falou ele, como que suspirando – e qual o problema de você vir aqui? Você mora no sétimo...

Ela parecia aflita, fez que não ouviu o comentário e passou a mexer nos papéis dele sobre a mesa.

- Que textos são esses? Ora essa... – ela ajeitou os óculos – você está escrevendo uma teoria sobre...hummmm....hum, hum....hummmmm..... hum, hum, quer dizer que você acha que todas as meninas de 20 anos que usam óculos de grau quadradinho são Ets?

- Cof, cof – ele balançou a cabeça afirmativamente.

Ela pensou longos momentos até exclamar:

- Rapaz, isso é uma boa surpresa! Também vou escrever a respeito. Mas, espere...

- Escreva – adiantou-se ele – você tem mais leituras do que eu...cof.

- Não, não, espere...acho que não posso, minha afilhada tem 20 anos e...ela não usa óculos.

- Talvez seja um disfarce, cof, é preciso considerar isso, cof, cof.

Ela parecia em transe ao balbuciar: disfarçada?

- Grande parte dos que encarnaram em 90 vieram de um quadrante secreto entre as Plêiades e a Ursa Menor. São Ets com uma leve disfunção ocular. Posso provar isso, levará tempo, é verdade...cof, cof.

Ela jogou os papéis em cima da mesa, foi até a janela e indagou:

- O que é que você queria me contar de tão importante? Não vá me dizer que é sobre os ônibus, já te disse, o fato da linha do metrô passar bem debaixo da linha dos ônibus não significa nada. Eles tem comportamentos diferentes.

- Já aprendi isso – respondeu ele com ar ofendido – venha, vou te mostrar, será melhor você ver com seus próprios olhos.

- Mostrar aonde? Onde está? - ela parecia apreensiva.

- Bem, você já passou pela cozinha e estamos na sala. Onde poderia estar? – expressou ele, encolhendo os ombros.

- No quarto! – exclamou ela horrorizada – você quer que eu vá até o seu quarto!?

Daí pra frente ela se descabelou, disse que a vida é sempre assim, que as pessoas confundem tudo, que eles são amigos e nada mais, que ela nunca deu brecha para maiores interpretações da parte dele, que aquilo era inominável, que ela se queixaria com a síndica, que os instintos deturpados dele terminaram com uma bela amizade, etc.

Ele permaneceu impassível, comendo um quadradinho de pão, até que ela terminasse. Daí explicou: trata-se de um invento.

Passaram-se demorados minutos até que ela, tremelicando de leve, hesitante, seguiu-o até o quarto. Ele então abriu a porta e a medida que a porta se abria ela exclamava: ohhhhh!

Ocupando quase todo o cômodo, estava o invento – um aquário gigante de 2 metros de altura, cheio de água até a borda, contendo no fundo uma cadeira, uma mesinha e uma máquina de escrever plastificada. Havia até um peixinho cor de laranja que nadava entre o mobiliário.

Os olhos dela pareciam vidrados, em seus lábios um sorriso maravilhado, infantil, ele ia começar a explicar, mas ela o interrompeu, falando com uma voz forte:

- Não diga nada! Já entendi, não precisa explicar. É, é, é um aparelho para escrever debaixo da água! Incrível! Oh...és um gênio!

- Você não acha que será útil? – indagou ele, encabulado.

Ela assentia com a cabeça, assentiu diversas vezes, enquanto pegava a bolsa, o lenço e os óculos, assentia e dizia quase num rumor, “genial, genial”.

Antes de se despedirem, ela perguntou o nome do peixinho:

- Hã? – fez ele - Ah sim, cof, cof, Nemo.

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 24/03/2010
Reeditado em 06/12/2012
Código do texto: T2156344
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