Filha
Filha
A menina chegou em casa esbaforida. Trabalhando de atendente de telemarketing e cursando o primeiro ano de enfermagem, não tinha tempo pra nada. Sua mãe estava terminando de fritar batatas enquanto o relógio da cozinha acusava 13 horas e seu pai, sentado, lia o Caderno de Esportes.
- As pessoas estão loucas – disse a menina, ocupando seu lugar a mesa – vocês não sabem o que o cobrador do ônibus aprontou hoje cedo...
Candidamente o pai olha para ela, dobrando o jornal.
- Filha – diz ele, pegando uma faca e levando-a à têmpora esquerda – está na hora de te contar uma coisa.
- Adamastor, não!- exclama a mãe, colocando a travessa de feijão na mesa – nós combinamos! Só quando ela completar 19 anos.
- Combinaram o que? – indaga a menina.
- Daqui uma semana...que importância tem? – retrucou o pai, que passara a faca para a têmpora direita, repetindo o gesto de desparafusar, e em questão de segundos colocou a própria cabeça sobre a mesa.
- Gente, o que é isso!? O que está acontecendo!! – gritou a menina.
Margarida, a mãe, prestes a tomar um copo de laranjada, interrompeu a ação, pegou a faca e bufou com desconforto:
- Adamastor, você é um precipitado mesmo. Nós combinamos outra coisa – dizia ela, levando a faca às têmporas - Credo, meu! Anos de terapia e não resolveu nada.
Margarida escolheu cuidadosamente um local para colocar sua cabeça. Perto da travessa de salada.
A menina gritava, chorava, soluçava, suas mãos se contorciam, era um grito pior que o outro, dizia estar vendo coisas.
- Ora, você está acostumada – proferiu a cabeça do pai – nessas festas que você vai...
- Isso mesmo – completou a cabeça da mãe – raves, e servem cada porcaria...
A menina não ouvia. Seu desespero era tamanho que jogou tudo no chão, celular, ipod, bolsa, livros... Saiu desabalada pela rua, chamando pela vizinhança.
- Você é um precipitado, Adamastor – disse a cabeça da mãe, cujas mãos tateavam pela mesa.
- Margarida! – trovejou a cabeça do pai – daqui uma semana ela faz 19 anos. Foi melhor assim. Afinal, ninguém avisa quando essas coisas vão acontecer...
- Sei...- resmungou ela – você viu a faca?