Tarde de Devaneios
Por vezes pensara que as virtudes mais óbvias de sua vida mesquinha tinham deixado de existir. Mas, sobretudo naquela tarde de devaneios descobriu-se sozinha. Talvez fosse a solução de alguns problemas simples do cotidiano, mas tinha ali uma vida que precisava ser entendida. Acabara por deixar de ser por alguns segundos que pareciam estourar em tranqüilidade e dor. Chorava como criança, e era preciso entender um pouco de si mesma naquela solidão, mesmo que por dias ficasse ali deitada no chão. Era, sobretudo sozinha, mesmo que estivessem tantos a seu lado, era sozinha que poderia perceber que no fundo não tinha ninguém. Não havia amor, ou era um amor que se transformava volta e meia em nostalgia, em vontade de vomitar toda aquela vontade. O corpo que se encostava ao chão gelado dava-lhe a sensação de estar em uma troca contínua de confidências, que necessitavam de compreensão. A cabeça não mais podia pensar que seria novamente algo que tão pouco parecia com a realidade. A utopia já era a realidade daquela vida. Que de tanto viver acabava por sobreviver assim inerte. Até que algum pressentimento foi evidenciado.
Bateram à porta, pensou se mesmo deveria levantar daquela reflexão, se suportaria ver a face de algum outro que não a corresponderia. Decidiu-se depois de muita insistência à campainha, ver quem a queria, qualquer coisa bateria a porta e voltaria a não viver. Com os olhos inchados e vermelhos das lágrimas que ainda lhe rolavam a face, abriu a porta. Foi surpreendida então com o que menos esperava. Com um abraço. Não disse mais nada durante toda aquela noite, lhe bastava aquela sensação, o friozinho que lhe subia a espinha e vinha de encontro à alma. Entregou-se naquele instante, o tempo parou, não saberia falar se ficaram ali por um segundo, ou uma hora. Apenas sentia. Pela primeira vez na vida sentiu que o amor era algo maior, e que poderia ser sentido sem palavras. O homem que agora lhe afagava os cabelos, era aquele mesmo que outro dia vira sem sobressaltos passar na rua. Era aquele mesmo homem, que puxara conversa com ela na saída do trabalho, mesmo sem ter sua atenção. Era aquele mesmo que insistia em pedir-lhe a amizade sem sucesso. Era o mesmo homem que não era feio nem bonito, e que não lhe correspondia às idéias. Era o mesmo homem para quem desligara o telefone, só para não ter que escutá-lo.
No entanto aquele carinho inesperado lhe voltava a cor da vida, tirava toda aquela apatia que empalidecia a sua face. Chorava, chorava cada vez mais, como para libertar-se de tudo que sufocava seu coração. Se pudesse escolheria morrer por alguns instantes que fossem, ali aos braços dele, estaria feliz, se contentava com isso.
Ele a conduziu até ao banheiro, abriu a ducha quente, e lhe colocou de roupa e tudo em baixo d’água. Ela acordou um pouco, ainda com aquela embriaguez do próprio choro, estava aos soluços. Durante uns 40 minutos sentiu, tudo literalmente ir pelo ralo do banheiro, tudo que lhe enchia a mente. Depois dessa meditação forçada, deitou-se na cama cansada. Enquanto ele a observava, sentado na borda da cama.
No dia seguinte, ao acordar não o viu mais. Não estava ali, aqueles braços fortes que a seguraram quando ela menos esperava. Ficou a sentir os lençóis brancos, enquanto acordava daquilo que parecia sonho. Depois de tomar um café amargo à beira da janela, avistando o mar, resolveu que precisava ligar para ele. Mas não ligou, passou o dia inteiro olhando o mar pela janela. A sentir que aquele azul poderia lhe responder o mais íntimo de si mesma. Olhava fixando seus olhos, nas pessoas que passavam e nas ondas que nunca paravam. Parecia estar nascendo ali, algumas palavras. Surgindo não sabia se do mar ou do céu, um silêncio que lhe envolvia. Confortou-se e ficou por uma tarde inteira. Pela primeira vez não se sentiu sozinha, mesmo estando só. E isso lhe bastava. Foi aí que descobriu sem querer que o amor não acabara.