Uma velha maluquinha
A velha sente-se cansada da fachada da boa mulher, com quem todos contam. E ela, conta com quem? Sempre foi meio maluquinha. Uma vez acendeu uma vela, e deixou pingar cera quente na testa do marido. Num momento de raiva. Em outros quebrou pratos, mas até quebrando pratos foi racional, quebrava os substituíveis.
Apesar dos estouros é trancada, que exaustão guardar segredos! Quais? Nenhum cadáver escondido num armário, no cofre as jóias presenteadas pelo marido, ao longo da vida. Proibido para ela é sentir. Há quase trinta anos acostumou a guardar a raiva, os ciúmes, a inveja, os medos e outros sentimentos perigosos. Menos a curiosidade, esta a persegue.
Para não carregar sozinha uma montanha conversa com Pandora, a atraente caixa de laca vermelha que comprou ao completar quarenta anos. Um dos caprichos realizados. Um brinde. Não foram assim tão poucos, é cheia dos caprichos. Trata a caixa com a consideração devida a uma amiga íntima. Única amiga de verdade, a aceita como é. Abraçada à Pandora conversa longamente, sem nada ocultar. Nesses momentos encontra-se escondida entre as paredes do quarto de casal, com o marido longe de casa.
Sem ter sido fumante roubou cinzeiros em restaurantes. Outros impulsos amarrou. Não bebe sozinha, embora entre amigos nem sempre modere. Os excessos são parte de sua natureza indomável e solitária, apesar de cercada de pessoas a quem ama, e por quem amada.
Naquela noite Pandora se acende, o brilho vermelho a ilumina. Uma mensagem da caixa. Qual? Fecha os olhos e suplica inspiração. O marido na aula de Judô, os filhos casados em suas próprias vidas, ela em casa e só. Aí...bem... que vontade fazer alguma coisa diferente, algo ainda não experimentado.
Telefonar? Para quem? Pensa nas amigas, e em sua busca mental, não encontra nenhuma disponível. Anda pela casa como um gato na cristaleira, pelo ouriçado. Abre o bar do marido, um móvel antigo na sala de estar. Que vontade ultrapassar limites.
Retira a garrafa de gim, encontra a lata de água-tônica na despensa. Prepara o drink, sorvido solenemente. É atrevida, embora em geral escondida até de si. As borbulhas da tônica fazem cócegas na garganta. Prepara o segundo gim-tônica. Uma porta interna se abre, melhor, portas. Não sabe quais, sente-se diferente, mais livre, um tanto fortalecida. Prepara um gim para Pandora, que é abstêmia, bebe por ela.
O telefone toca. Atende. A filha mais velha quer marcar um jantar para o dia seguinte. Toca novamente. A sobrinha vai viajar e quer se despedir. A filha do meio liga para pedir conselho. O genro para falar com o sogro. A caçula para contar do vestido que mandou fazer para um casamento.
No dia seguinte, telefonemas varridos da memória, não se recorda como foi parar na cama, nem da chegada do marido. Lembra sim, tomou um bocado de gim, bebida da qual nem gosta, subverteu, e o mais incrível, não sente culpa.
Na mesa do café da manhã seu homem lhe conta. Quando chega do Judô encontra uma mulher trôpega, trançando as pernas, sem conseguir dizer uma palavra inteira, falando aos pedaços, trancos e espirais. Não a reconhece. Sai atrás de sua mulher chamando-a pelo nome e pedindo socorro, duvidando que aquela bêbada fosse a esposa sóbria e tranquila. Dá-se por vencido, despe-a e a veste com o pijama mais macio que achou. Cuida dela. Nessa manhã fala com ela com um carinho brincalhão.
Uma ponta de susto, e talvez de raiva. O que aconteceu? Ela nunca aprontou uma dessa!
_ Enquanto você dormia tranqüila e desmaiada, confesso dormi também, pensei: "Melhor uma bebedeira que doença. Você anda tão contida!"
Espantada abraça o marido agradecida pela forma como a trata, sem sermão ou pitos. Pitos dele teve de sobra, nos tempos juvenis, casaram cedo. Por que procura na voz do marido o tom de recriminação? Por que sente que não merece seu carinho? Que dureza tem com ela mesma? Empurra a culpa nascente, como aprendeu a empurrar a raiva. Raiva sim, culpa não. Ora, chega, não é? Cansou da boa moça.
Mais tarde, ao buscar as crianças na escola, a neta de oito anos lhe diz, olhos maliciosos:
_ Vovó...ontem você aprontou.
_ Aprontei?! Como assim?!
_ Você enxugou! E a menina faz o gesto do polegar apontando a boca, e inclinando a cabeça. Nenhuma dúvida do que quis comunicar.
_Enxuguei? Como pode dizer isso?!
_ Mamãe contou que sua voz estava diferente no telefone, e papai também achou. E logo ligaram lá para casa a tia Nitinha, a tia Lina e a tia Laura espantadas e sem saber o que havia com você. Um tal de tocar o telefone e o celular, ao mesmo tempo. Todo mundo ligando uns para os outros, conversando de você, a mulherada preocupada. Ligaram de novo pra sua casa, vovô falou que você dormia. Dormia com os anjos, heim?!
Surpresa, mas divertida. Puts, não se lembrava de nada! Branco total. Ri dela mesma e da situação que se armara a sua volta.
_ Nossa, é? E...que mais? Falaram mal de mim?
_ Vovó, você é da minha família. Pode me contar, toda família tem seus podres. Ninguém falou mal de você, o que falaram é que você é trancada como uma ostra.
A velha mulher remoça, de seus ombros cai o peso da vida perfeita. Todos sabiam de sua aprontação, e nenhuma recriminação. Um milagre aconteceu. Abraça a neta, agora às gargalhadas, se sente outra menina.
_ Sabe que tenho vontade lhe dar um presente? Quer minha caixa de laca vermelha? Aquela que guardo no quarto? Acho que não preciso mais dela.
_ A Pandora? Lógico!
_ Como sabe o nome dela?!
_ Ora...Todo mundo sabe que você tem uma caixa vermelha chamada Pandora.
_ Todo mundo... Quem?!
_ Mamãe, tia Nitinha, a tia Lina e a tia Laura, papai, os meus tios e todos os seus netos. Ah, vovô também.
_ Minha neta... Você saiu melhor que a encomenda! E eu que não sabia que todos vocês sabiam que não sou maraaaavilhosa?! Ufa! Alívio! Diz sorrindo.
Como sabem de Pandora? Será que abri o bico nos telefonemas, quando estava pra lá de Bagda? Pensa. Com certeza abri. Vou abrir muito mais. Mãos dadas com a neta e o neto, deseja do fundo do seu coração multiplicar os papos vividos com a bendita Pandora, se abrindo agora com pessoas. Suas boas amigas, com certeza sentem falta de conluios, tramas, urdições. E a mulherada, as crianças e os homens da família se divertem com suas pequenas impropriedades. Não consegue contar uma piada, ri e ri se contorcendo, e ninguém entende.
Seus olhos brilham ao lembrar o encontro com o marido naquela manhã. "Será que deixo o castelo no qual me enfiei? Cancei de ser tatu-bola, um caramujo. Estou velha demais? Bom, um pouco posso, até já comecei”. Matuta. A neta parece ler seus pensamentos, que diabinha!
_ Vovó, gosto de ser um pouco maluquinha assim como você. Vamos ser maluquinhas juntas? Já pensou que legal? A gente pode inventar...deixeu pensar...
E por aí foram os três, a avó e o casal de netos. O menor também queria ser um menino maluquinho. Antes de levar as crianças para casa comeram um sandwiche com suco de laranja, passaram numa livraria e compraram o livro do Ziraldo.