NO ESCURO ABRANGENCIAS
De criança era normal demais, tão normal que chegava a destoar. Não era muito de brincar de piques, tinha só uma boneca a quem trocava monossílabos e carinhos zero. A idéia de mãe e filha me incomodava deveras. Preferia ler bulas dos remédios de meu pai aos romances “água com açúcar”. Decorava cada posologia, advertência e efeitos colaterais. Pensei em ser médica, química, enfermeira ou farmacêutica, mas trabalho no balcão de uma loja de ferragens. Lembro dos gritos de minha mãe quando meu pai colocava a chave na porta para entrar. Por vezes, ele estava bêbado, mas era inofensivo. Ela parecia ser mais perigosa. Bradava mais que os cães, socava portas, quebrava copos e pratos, cuspia palavrões e saliva. Seus olhos quase saltavam de seu rosto envelhecido. Me dava nojo, nunca medo.
Tinha medo era do meu pai. Sua calma diante dos gritos, incapaz de um gesto abrupto ou uma grosseria sequer. Eu ficava de pelos arrepiados. Ele bebia para apagar minha mãe de sua mente e abortar sua vida medíocre de funcionário publico. Mas seu cotidiano era absurdamente convencional. E sua fronte, pálida e sem rigor.
Sabe-se lá até onde vai o limite de um homem?
Minha família não era dada a afagos e meu pai tinha um olhar profundo, de uma tristeza contemplativa. Talvez era acalentado com as dores do próximo ou com a própria agonia de estar preso em si mesmo.
“Querido pai. Você me perguntou recentemente por que afirmo ter medo de você. Então acho que é esse o momento certo para te dizer o motivo. Tenho medo de homem covarde.”
Dobrei o bilhete e coloquei dentro do bolso do terno cinza chumbo, adornado por um cravo vermelho, que encobria seu corpo dentro do caixão.
Sua tez nunca esteve mais corada.