O SILÊNCIO DA SABIÁ

Naquela manhã o velho homem estranhou o silêncio da sabiá que vivia solitária em seu jardim no pinheiro que ele mesmo plantara há tantos anos. As mágicas manhãs primaveris de Setembro traziam-lhe recordações que estavam impregnadas nas paredes daquela casa que sintetizava uma nova história que ele escrevera com as próprias mãos. As quatro crianças já haviam partido, mas seus barulhos e algazarras ainda ecoavam por cada canto através da sonoridade silenciosa da recordação.

O olhar perdido e o seu mutismo poderiam ter capturado alguma cena antiga, uma fotografia que sustentava magicamente em sua imobilidade. Pediu à esposa que lhe fizesse uma feijoada, comida preferida. Lembrou-se do casamento do sobrinho e pediu à mulher que colocasse o melhor terno ao sol.

E aquela manhã foi se espichando modorrenta entre o silêncio da sabiá, a movimentação na cozinha e no quintal, o cheiro do feijão cozido que ia subindo pelas escadas até alcançar o quarto iluminado onde o velho homem contemplava a vida através da tela da recordação.

Viu-se menino no vilarejo distante, os onze irmãos, o pai e a fazenda. A casa na cidade e a mãe a mourejar e a ajudar no armazém. Viu-se a cavalo com o pai – revólver na cinta – a calvagar pelos pastos a procura de uma rês desgarrada. Lembrou-se da vontade de estudar e de ir para a grande cidade para ser engenheiro; da adolescência conturbada pela política do interior e da viagem para a cidade grande, deslumbramento e solidão, dos estudos e da guerra que o prendeu por longos anos no exército que para ele fora uma grande escola. Viu-se começando a vida como funcionário de loja comercial – engenheiro frustrado – e o casamento e a família e a primeira casinha que comprou na cidade. E o progresso naquela empresa que fora seu único emprego de onde saiu diretor para se aposentar, e os sacrifícios para que todos os filhos pudessem estudar e por lhes dar um exemplo de dignidade, e viu-se ajudando novamente as crianças grandes e os netos e compreendeu que fora o centro de muitas coisas por um tempo longo, muito longo.

Aquele não era um meio – dia qualquer de primavera. Desejou para si mesmo o sol e a vida e quis continuar ali para sempre, em sua cadeira predileta, ao pé de uma janela aberta para que a luz pudesse penetrar. Estampada naquela paisagem, viu a face do menino que fora e percebeu que na lição solar havia muito o que pensar e muita metafísica e recordou-se das palavras do poeta: “ Se o poente é belo, é bela a noite que fica. Nisto é que se deve pensar quando se vai morrer; e estar alegre ao viver por saber que o sol existe, apesar de tudo quanto não se saiba”.

Com os olhos semicerrados, procurou alguma lembrança para levar consigo e vieram-lhe à mente as faces queridas dos filhos, da esposa, dos irmãos, e a própria imagem do homem lutador à procura de respostas e de Deus. O sol iluminara sempre o cenário de sua vida. E neste momento de despedida, ao despedir-se de si mesmo e daquela casa - o pequeno mundo que criara -, do alto de sua janela, após concluir que tudo passa e fica, desejou para si mesmo - e para sempre- um cenário como aquele: um dia cheio de sol!

Na manhã do dia seguinte a sábia voltou à janela do quarto vazio e pôde cantar novamente e festejar o amanhecer ensolarado ao ver, pela primeira vez, o seu ninho repleto de movimento e de vida.

Nagib Anderáos Neto

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